Campo de Ourique – como se formou um bairro

São histórias inéditas que convidam a um novo olhar sobre Campo de Ourique. Como nasceu e cresceu este bairro, um dos primeiros planos urbanísticos aprovados  por um emblemático plano de melhoramentos da cidade? Quem foi, afinal, o autor dos seus traços? Este roteiro convida à descoberta do pioneirismo deste bairro e do que se investiga sobre ele.  

Ao contrário de muitos “bairros” lisboetas, que não têm limites administrativos, mas que estão enraizados no imaginário dos lisboetas, o bairro de Campo de Ourique foi definido em plano. Aprovado em novembro de 1878, este projeto urbanístico foi um dos primeiros a serem executados pela Câmara Municipal de Lisboa sob a responsabilidade do engenheiro Frederico Ressano Garcia. Os primeiros passos deste bairro são percorridos neste roteiro, escrito a quatro mãos com a historiadora de arte Susana Maia e Silva, com base na sua tese de mestrado em História da Arte da NOVA FCSH. O roteiro é também cenário para outras investigações que pode explorar nos links ao longo do texto.

  1. Quartel de Campo de Ourique (Rua Infantaria 16)

Quando o plano urbanístico do bairro foi traçado,  já existiam duas estruturas emblemáticas: o Quartel de Campo de Ourique e o Cemitério dos Prazeres.

O Quartel de Campo de Ourique é um grande edifício cor de rosa que se estende ao longo da Rua Infantaria 16 e da Rua Ferreira Borges. Contrariamente ao que tem sido divulgado, este quartel não foi edificado a mando do Conde de Lippe, no âmbito da reorganização do exército português, mas a partir de 1758, por razões que estão ainda por descobrir, salienta Susana Maia e Silva. Independentemente delas, o quartel foi levantado num local estratégico para a defesa da capital, com visão privilegiada sobre a serra de Monsanto. A sua construção levou à reorganização da área e a abertura da Parada, em 1812, um espaço dedicado ao treino militar, alterou o quotidiano do campo de Ourique.

No século XIX, a restante área de Campo de Ourique dividia-se em cinco propriedades agrícolas: a Quinta da Pacheca Grande, a Quinta da Pacheca Pequena, a Quinta do Dourado, a Quinta do Dourado de Baixo e a Quinta ou Terras do Dutra.

 

  1. O primeiro quarteirão do bairro (entre as ruas Ferreira Borges, Infantaria 16 e Correia Teles)

Mesmo no limite do quartel encontramos o primeiro quarteirão edificado. O plano urbanístico do bairro de Campo de Ourique foi traçado não pelo engenheiro Ressano Garcia – embora tenha acabado por assiná-lo – mas pelo técnico Augusto César dos Santos que pegou num plano imobiliário da firma Silva, Esteves, Lopes e Companhia e o expandiu para o bairro, explica Susana Maia e Silva.

A Câmara Municipal de Lisboa percebeu o potencial da zona, que não fazia parte do eixo privilegiado do plano de melhoramentos da cidade, e o bairro acabou por ser um dos primeiros a serem edificados neste contexto de expansão da cidade .

O processo de edificação começou em abril de 1879 com a construção de oito edifícios e de um conjunto de casas abarracadas. Este primeiro quarteirão, formado pelo cruzamento das ruas Ferreira Borges, Infantaria 16 e Correia Teles, traduz o traço inovador do plano, baseado em princípios geométricos que foram modelados – como ruas, passeios ou quarteirões – de acordo com as características das áreas a urbanizar.

 

  1. Pátio das Barracas (Rua Infantaria 16, 42-50)

Avançando pela Rua Infantaria 16, chegamos aos números 42-50. Aí, num bairro historicamente burguês, esconde-se uma vila operária conhecida como “Pátio das Barracas”. Este conjunto de habitações, à semelhança de outras vilas operárias do bairro da Graça, foi construído por empresários. Neste caso foi pela firma Silva, Esteves, Lopes e Companhia, para acolher os operários que trabalharam na construção dos imóveis planeados pela firma para o bairro. No gaveto com a Rua 4 de Infantaria, 32, situava-se a moradia de um dos construtores. Hoje, esta vila encontra-se em estado avançado de degradação.

  1. Jardim Teófilo Braga (Rua Almeida e Sousa, 27)

A cerca de dois minutos a pé do Pátio das Barracas, percorrendo a Rua 4 de Infantaria, encontramos o emblemático ponto de encontro do bairro, concluído na década de 1890: o Jardim Teófilo Braga, designado originalmente de “Jardim da Parada” por aí se realizarem as paradas do quartel. A atração do jardim desde 1920 é a estátua de Maria da Fonte, da autoria do escultor Costa Mota. O coreto e o lago também juntam memórias dos que passaram aqui a sua infância e juventude.

  1. “A Tentadora” (Rua Ferreira Borges, 1 e Rua Saraiva de Carvalho, 242-246)

 

Do Jardim Teófilo Braga ao n.º 1 da Rua Ferreira Borges são cerca de 300 metros a pé pela Rua 4 de Infantaria. O edifício acolhe um dos principais símbolos do bairro – a pastelaria “A Tentadora” – e é um dos mais belos exemplos da Arte Nova, um estilo decorativo e arquitetónico que pontua também grande parte dos edifícios notáveis das Avenidas Novas. Foi a primeira obra arquitetónica em Lisboa de Ernesto Korrodi, escultor-decorador suíço naturalizado português, que assinou cerca de 400 projetos no país.

  1. “A Concorrente” (Rua Saraiva de Carvalho, 133-143)

Outro edifício com frisos decorativos típicos da Arte Nova é o n.º 133 a 143 da Rua Saraiva de Carvalho, hoje conhecido no bairro pel’“A Concorrente” (uma papelaria) em frente ao de “A Tentadora”. O seu aspeto atual data de 1913, ano em que foi ampliado, remodelado e enobrecido pelos azulejos pintados por José António Jorge Pinto – uma das obras mais relevantes deste pintor figurativo. Este edifício ficou também na história de Lisboa e do país por ter sido cenário de um dos episódios da revolução republicana, na noite de 4 para 5 de outubro de 1910.

 

  1. Prémio Valmor de 1931 (Rua Infantaria 16, 92-94)

Retomando o percurso que nos leva de volta ao Jardim Teófilo Braga, viramos depois para a Rua Infantaria 16. Os números 92 e 94, localizados uns metros depois, podem passar-nos despercebidos, mas este edifício sóbrio, com um baixo-relevo em pedra, mereceu o Prémio Valmor de 1931, no mesmo ano em que foi mandado construir por Manuel Roque Gameiro. A sua atração? Ser um dos primeiros prédios modernistas construídos em Lisboa. A sua traça inicial foi alterada em 1957, tendo sido acrescentados os dois últimos pisos (e que, na verdade, quase o tornaram irreconhecível).

 

  1. Antigo Cinema Europa (Rua Francisco Metrass e Rua Almeida e Sousa)

Recuando uns metros  e entrando na Rua Francisco Metrass, é inevitável prendermos o olhar numa escultura em alto-relevo, da autoria de Euclides Vaz, que ocupa a fachada de um edifício na esquina com a Rua Almeida e Sousa. Trata-se da princesa Europa, que foi raptada pelo deus grego Zeus, disfarçado de touro, e que lhe prometeu levar o “velho continente”, os locais que se estendiam para lá da Grécia.

O Cinema Europa, um dos símbolos da história do cinema em Lisboa, foi inaugurado em 1931 e funcionou até 1981. É hoje um centro cultural com biblioteca.

  1. Mercado de Campo de Ourique (Rua Coelho da Rocha)

Descendo a Rua Francisco Metrass, chegamos ao Mercado de Campo de Ourique, inaugurado em abril de 1934. Foi mandado construir por José Dionísio Nobre, o mesmo que esteve na origem do Cinema Europa e do desenvolvimento comercial do bairro nas décadas de 1930 e 1940. Este símbolo do bairro sofreu sucessivas remodelações. Desde 2013 é um mercado com oferta de restauração e experiências gourmet.

  1. Igreja do Santo Condestável 

O nosso percurso termina uns metros depois do mercado, junto a um dos últimos grandes edifícios a ser construídos no bairro, já na fase final do processo urbanístico: a Igreja do Santo Condestável.

Erigida em 1951 no lugar da Empresa Cerâmica de Lisboa, um dos últimos resquícios da atividade industrial da zona, foi projetada pelo arquiteto Vasco Regaleira e passou a impor-se no bairro, até pela sua dimensão algo desproporcionada.

A década de 1950 marca também o fim das intervenções urbanísticas no bairro, que se manteve isolado do resto da cidade, pela falta de grandes vias de ligação. Esta característica ainda hoje faz parte da sua própria identidade bairrista.

Escrito por
Dora Santos Silva

Professora do Departamento de Ciências da Comunicação da NOVA FCSH. Coordenadora editorial do +Lisboa.

Ver todos os artigos
Escrito por Dora Santos Silva

O PROJETO

Lisboa vista pela ciência [Saiba +]

Ficha técnica e contactos

Na redes

+ Comunicaçao de Ciência na NOVA FCSH

Unidades de Investigação da NOVA FCSH

Clique aqui para aceder às 16 unidades de investigação da NOVA FCSH.