Fábrica Braço de Prata. Para Lisboa, ilegalmente

A criatividade e a cultura são os bens que atualmente a Fábrica Braço de Prata, na zona industrial de Xabregas, produz. É um espaço ilegal, sem financiamento externo, mas em 2015 dava trabalho a 14 pessoas. Como? Através de um modelo de autogestão explicado por Mariana Rei, investigadora do Instituto de História Contemporânea (IHC) da NOVA FCSH.

O uso de fábricas abandonadas como lugares para espaços criativos e culturais começou com a Fábrica Braço de Prata. É o “caso pioneiro e com mais de anos de existência em Portugal”, escreve Mariana Rei, investigadora do IHC, no capítulo do livro Espaços, redes e sociabilidades. Cultura e política no associativismo contemporâneo (coord. Joana Dias Pereira, Maria Alice Samara e Paula Godinho, 2016) onde mostra resultados de março de 2015.  No seu estudo embrionário sobre três fábricas requalificadas e apropriadas, Mariana Rei identifica particularidades da Fábrica Braço de Prata, na zona de Xabregas.

O modelo de gestão do espaço revela-se alternativo às fábricas criativas. Enquanto estas últimas são financiadas, a Fábrica Braço de Prata – uma fábrica apropriada –, assenta num modelo de autogestão. Por exemplo, o valor do bilhete pago à entrada da Fábrica é revertido na totalidade para os músicos e artistas que vão atuar.  O lucro do bar, da livraria e dos jantares de grupo são o rendimento para os 14 funcionários que ali trabalhavam em 2015. E nada se esconde: “A transparência é tida como fundamental no sucesso e sustentabilidade do projeto”, aponta Mariana Rei. Esta autonomia de gestão reflete-se, também, na organização regular de atividades para dinamizar o espaço, ao contrário das fábricas criativas, em que isso não é tão frequente.

A fábrica assume-se como um “espaço dedicado ao pensamento e às artes”, afirma Nuno Nabais, professor de Filosofia na Universidade de Lisboa e proprietário da Fábrica, em entrevista a Mariana Rei. É promovida “a experimentação artística de forma interligada com o pensamento político”, aponta a investigadora, concluindo que o público que frequenta o espaço é “politicamente mais ativo do que a média, e tendencialmente de esquerda”.

As paredes da antiga fábrica de armamento, revestidas de memórias de outros tempos, estão  transformadas em espaços de concertos, jantares de grupo, livrarias, um bar e ainda galerias de exposição. Cada uma das 12 salas tem o nome de um filósofo, artista ou escritor, como Platão, Arendt, Chaplin, Saramago. Neste espaço, há ainda uma programação dedicada às crianças.

Da vontade de Nuno Nabais e de outros que o ajudaram, a Fábrica Braço de Prata ergue-se “do meio académico e como reação a ele”.  Existe uma “preocupação notória e visível com a história e memória daquela fábrica enquanto espaço de duplo estatuto, industrial e militar”, conservada pelo professor de Filosofia e funcionários.

A Fábrica Braço de Prata abriu portas em junho de 2007 e desde então é um caso de sucesso… ilegal.

Às armas, às armas… 

Sob o pano de fundo da Guerra Colonial (1961-1974) a Fábrica Braço de Prata, à época com 12 mil operários, produzia o armamento e o fardamento necessário para o exército português. Neste artigo do jornal Público,  a jornalista Cristiana Faria Moreira revela que a fábrica também chegou a produzir armamento para a República Federal da Alemanha. Nos anos 90, conta na reportagem, o edifício foi abandonado, mas não deixou de estar na mira do setor imobiliário.

A transformação da Fábrica Braço de Prata no espaço que atualmente se conhece começou precisamente com um livro. Ou vários. Nuno Nabais tinha a livraria Eterno Retorno instalada no Bairro Alto, mas decidiu encerrá-la por solidariedade com a livraria Ler Devagar, conta Mariana Rei. Após alguns percalços, a Eterno Retorno encontrou a sua casa na Fábrica Braço de Prata.

O lugar da livraria era para ser provisório: em 2001, refere a investigadora, estava previsto a ocupação daquele espaço para a construção de um condomínio de luxo. Até o projeto estar desembargado, o espaço podia ser utilizado por Nuno Nabais, mediante um acordo de comodato, ou seja, o espaço era ocupado gratuitamente em troca da manutenção do edifício.

Em junho de 2007, a Fábrica Braço de Prata abre portas a um novo espaço de leitura, música e arte. E o fim não estava próximo: em 2008, o contrato de comodato termina porque a empresa proprietária abre falência. E tudo se torna ilegal, mas isso não permite fechar portas porque “as proporções que por esta altura a nova Fábrica Braço de Prata já tinha tomado enquanto novo espaço cultural da cidade foram tais que o espaço se mantém aberto até hoje”, aponta a investigadora. Na reportagem do Público, o professor de Filosofia explica à jornalista que a fama deste espaço se deveu, em parte, ao artigo publicado no New York Times em 2008,  com o título “Lisboa ganha vida” (tradução livre).

Volvidos 11 anos, o espaço continua ilegal, alvo de processos em tribunal e de inspeções da ASAE. No entanto, os “grandes concertos e performances ilegais”, como Nuno Nabais define a Mariana Rei, são um apoio para os artistas em ascensão. Além disso, em Portugal, este é um caso único, porque ainda nenhum espaço deste cariz conseguiu replicar aquilo que define e atrai o público a visitar a Fábrica Braço de Prata.

Como explica Nuno Nabais, esta situação de “ilegalidade consentida” é intencional e tem quatro objetivos: ser uma alternativa, “não hierárquica, às instituições académicas”; ser um exemplo alternativo e autossustentável, em relação a outras espaços dependentes de fundos públicos; tornar-se “uma experiência de desobediência civil mas alegre”; e por último, ser um espaço que prima pela diferença e inovação, a moeda de troca para permanecer no local.

Mariana Rei ressalva ainda que, apesar de Nuno Nabais não pagar renda, existe uma preocupação na liquidação dos impostos, o que torna este espaço uma empresa unipessoal, apesar do seu modelo de gestão alternativo.

Outra característica deste espaço é a decoração: como as fábricas apropriadas têm uma forte ligação com a população, a decoração resulta da reciclagem de móveis, tecidos e outros produtos “seguindo intencionalmente uma linha quase antiestética”. Este tipo de espaços,  afirma a investigadora, são importantes no exercício de “direito à cidade”, ou seja, “como resposta à ausência de estruturas públicas dedicadas à coletividade”, por um lado, e no resgate de edifícios abandonados em determinadas zonas da cidade, por outro, assim travando a especulação imobiliária.

O professor de Filosofia assume a Fábrica como “um cenário de resistência feliz”. Um cenário de ilegalidade consentida. Um cenário de artes, música e literatura. Um cenário de melancolia, interrogações e inspiração para a mente de José Saramago, no livro que nunca acabou de escrever.

“Esta bomba não rebentará”

Assim estava escrita a mensagem numa bomba que não explodiu contra as tropas da Frente Popular da Estremadura, durante a guerra civil de Espanha. Tal acontecimento, cuja fonte Saramago afirma não se lembrar, comoveu-o. Estava escrito em português. A aliar-se a todo este cenário, uma interrogação ainda ecoava na mente do escritor: porque é que não se conhecem greves do proletariado em indústrias de armamento? Esta pareceu ser a chave para o enredo das primeiras 22 páginas do livro “Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas” (Porto Editora, 2014), uma “velha preocupação” de Saramago que ficou por acabar, aquando da sua morte em 2010.

O cenário da Fábrica Braço de Prata, presente na memória do Nobel, acabou por ser o seu último suspiro literário, num enredo de amor entre uma mulher inteligente e pacifista, Felícia, e um contabilista apaixonado por armas e peças bélicas, empregado na fábrica Belona S.A, Artur Paz Semedo. Incitado pela ex-mulher, o contabilista leva a cabo uma investigação na fábrica (com o nome da deusa romana da guerra) para perceber qual o papel da fábrica na guerra civil espanhola. A passagem do livro que faz referência à Fábrica Braço de Prata é feita precisamente no momento em que Felícia faz a revelação do episódio que Saramago não esqueceu, a Artur Paz Semedo:

Li em tempos, não me recordo onde nem exatamente quando, que um caso idêntico sucedeu na mesma guerra de espanha, um obus que não explodiu tinha dentro um papel escrito em português que dizia Esta bomba não rebentará, Isso deve ter sido obra do pessoal da fábrica braço de prata, eram todos mais ou menos comunistas, Nessa altura parece que havia poucos comunistas, E algum que não o fosse, seria anarquista, Também pode ter sido gente da tua fábrica, Não temos cá disso, Braço de prata ou braço de ouro, o gesto é idêntico (…) 

Manifestado o fio condutor para todo o romance, embora inacabado, fica a possível história, imortalizada em três capítulos e nas paredes da Fábrica Braço de Prata, sítio do lançamento do último romance de José Saramago.

Fotografia: Fábrica Braço de Prata, 2012 (Facebook Fábrica Braço de Prata).

Escrito por
Ana Sofia Paiva
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