Amélia Andrade: “Lisboa merecia um projeto de investigação subsidiado”

“Pão, Carne e Água: Memórias de Lisboa Medieval” mostra-nos muito mais do que o abastecimento alimentar da cidade na Idade Média. A exposição, comissariada por Amélia  Andrade, docente do departamento de História e investigadora do Instituto de Estudos Medievais (IEM), e Mário Farelo, investigador do mesmo instituto da NOVA FCSH, é uma viagem pelas vivências da população medieval lisboeta, os seus jogos de poderes e o legado que vingou até hoje.

Dora Santos SilvaEsta exposição resulta de uma parceria entre o Instituto de Estudos Medievais (IEM) da NOVA FCSH e da Câmara Municipal de Lisboa, através do seu arquivo, e partiu de um projeto de investigação científico sobre o abastecimento alimentar da cidade de Lisboa medieval. O que nos dizem o pão, a carne e a água sobre o quotidiano da cidade nesta época?

Amélia Andrade – Diz muito porque temos três produtos fundamentais da alimentação humana que estavam presentes no quotidiano de Lisboa. Não só eram indispensáveis à sua alimentação, como sustentavam atividades económicas determinantes de que a população de Lisboa se ocupava. Também forneciam às autoridades, quer locais quer régias, significativos rendimentos através da cobrança fiscal. A água é um dos elementos que serviam não apenas para alimentação, mas também para sustentar muitas atividades artesanais, e nesse aspeto Lisboa era uma cidade especialmente rica em água.

O pão era um alimento fundamental e daí ocupar na nossa exposição um  grande protagonismo. A carne era um consumo em crescimento nas cidades medievais, e uma cidade da dimensão de Lisboa ganhava especial significado, uma vez que  tinha disponibilidade em termos económicos com a sua vasta e diversificada população para sustentar o consumo da carne que, como conseguimos demonstrar através da investigação realizada, atingem quantitativos extremamente significativos.

Ana Sofia PaivaE o que é que se herdou dessa Lisboa medieval?

Mário Farelo – Herdaram-se várias coisas, como outras que também se transformaram. Herdou, sobretudo, a importância dos cereais que se mantêm, ainda hoje, na nossa alimentação. A carne obviamente mantém-se, embora haja essa diferença com o facto de na Idade Média ter sido submetida a alguns interditos e, portanto, não era possível ser consumida todos os dias, algo que hoje não acontece. Tirando datas muito excecionais, há um consumo muito mais sustentado e permanente da carne.

Mas há também elementos que se mantêm ao nível da tecnologia, por exemplo. E aí a exposição é muito interessante. Ver, por exemplo, um assador que é proveniente de uma escavação efetuada no castelo de S. Jorge, um assador que é perfeitamente similar, quase idêntico, àqueles que ainda hoje se pode comprar nas feiras. E depois também, obviamente, permanências ao nível dos tipos de carne que se consumiu e que alguns deles se consomem, embora obviamente na Idade Média haja uma maior diversidade.

Coisas que não ficaram, por exemplo, são os produtos que nós hoje comemos e que naquela altura não existiam, como os que provêm da América. Mas há de facto muitas permanências e a exposição constitui um bom mote para, de facto, as pessoas irem ao encontro dessas permanências e ver também nelas um pouco daquilo que era e aquilo que é hoje.

AA – Eu lembraria também alguns tipos de pão consumidos na cidade de Lisboa. Nós temos uma lista das tipologias de pão que hoje são consumidos: o pão de leite, a regueifa, a broa… E também chamaria a atenção para o facto de termos elementos patrimoniais. No caso de algumas fontes, nomeadamente o Chafariz do Andaluz, e também algumas referências toponímicas na Sé de Lisboa, que remetem exatamente para os trabalhos, para os espaços de venda, para os espaços de transformação ligados à produção do pão e  da carne, e para as fontes, chafarizes e poços de Lisboa.

DSSEsta exposição apresenta também documentos importantes sobre Lisboa, que nem sempre estão acessíveis ao público, como o Livro das Fortalezas de Duarte de Armas ou o Livro dos Pregos. Aliás, alguns estão expostos pela primeira vez nesta exposição, como o Livro das Posturas de Lisboa e o tão polémico pergaminho de 1383 comprado através do website OLX. O que nos revelam estes livros e documentos?

AA – Revelam-nos muito e sobretudo acho que são muito interessantes de serem visualizados, porque muitas vezes só conhecemos os documentos, quer os especialistas quer o público em geral, pelas suas versões digitais. E ali temos a oportunidade de os ver tal e qual eles são. E se o Duarte de Armas não versa diretamente Lisboa, é um códice absolutamente excecional do início do século XVI que contém desenhos com duas tomadas diferentes de vista das localidades fronteiriças que se estendem entre Caminha e Castro Marim, para além de Barcelos e Sintra. Chamou-nos a atenção por ter representações de fontes, poços e chafarizes localizados nas diferentes localidades e que eram muito semelhantes àqueles que encontraríamos em Lisboa na mesma cronologia.

O Livro dos Pregos é um códice de referência, como também o Livro Carmesim, que tem aquela lindíssima iluminura, a heráldica da cidade de Lisboa e um conjunto extraordinário de documentação. Mas o que nos deu particular prazer trazer a Portugal pela primeira vez foi o Livro das Posturas que está no Arquivo Real e Geral de Navarra, que não sabemos por que razão lá está, mas que contém as posturas mais antigas conhecidas da cidade de Lisboa relativas ao século XIV, e talvez das mais antigas do país, penso eu.

Tanto quanto nós sabemos, poucas mais haverá anteriores e é um códice excecional, de grande qualidade na sua feitura, na sua organização, demonstrando que a gestão camarária de Lisboa do século XIV tinha uma enorme qualidade. Esses juízes, vereadores e oficiais da cidade de Lisboa tinham grande proximidade aos oficiais régios,  eram indivíduos qualificados e transmitiam na sua gestão esse saber, de gerir e escrever, ao utilizar a palavra escrita como método primordial na gestão.

MF – E, nesse aspeto,  aquilo que nós temos em muitas daquelas posturas são regulamentos para evitar as fraudes, para que as pessoas pudessem adquirir os seus produtos nas melhores condições de higiene. Por isso, passa muito por essa atividade dos almotacés, da polícia, diríamos hoje, quase inspetores da ASAE, de facto garantir que o consumo que se fazia na cidade de Lisboa desses produtos fosse o adequado.

Eu lembro-me, por exemplo, de organizar legislação camarária e de ver que era ordenado não retirar a cabeça aos animais, para se saber qual era o animal que se estava a comprar. Por exemplo, ao nível do peixe, para não se misturar o peixe que era pescado à linha com aquele que era pescado à rede — porque o peixe que era pescado à rede deteriorava-se muito mais facilmente —, o peixe tinha que ser vendido em dois espaços diferentes, daí o preço também ser diferente. Estas medidas visavam de facto a qualidade dos bens.

ASPPegando nesta temática do peixe e da carne, um dos objetivos da exposição é precisamente mostrar quem eram os profissionais que tratavam as carnes ou iam buscar a água à fonte e distribuí-la pela cidade. Quem exercia estas funções?

Mário Farelo – A exposição teve como um dos objetivos principais, e isso foi um pouco o “porto de honra” desde o início, trazer as pessoas para a exposição, ou seja, não ser um discurso só régio. Obviamente que o rei está presente através dos documentos, através da sua iconografia, mas de facto a ideia foi trazer também para a exposição as pessoas, os homens e as mulheres que estavam ocupadas nessas funções. E ao nível da alimentação, da produção e da venda de bens, havia obviamente uma grande presença feminina. Eu acho que isso também foi o que a exposição pretendeu valorizar, foi um pouco o papel feminino em todas estas atividades. Tanto diríamos no abastecimento de água, mas sobretudo na produção e na venda do pão.

Só a questão da fiscalização é que era algo muito masculino. Eram oficiais régios ou concelhios e aí vê-se que era uma atividade dominada pelos homens. Agora ao nível da produção e da venda, era muito uma atividade feminina. Quando estamos em grandes cidades, há uma maior especialização das funções. Quer isto dizer que há setores que se ocupam da feitura de um determinado tipo de produto, ao passo que se formos para uma aldeia, por exemplo, um ferreiro teria que se preocupar com a ferragem dos cavalos, com a fabricação das facas, das armas. Até mesmo numa cidade como Lisboa ou Porto e outras, há uma grande especialização.

E a exposição também é um pouco isso, o de dar a conhecer toda esta variedade de profissões que ocorriam e que estavam no âmbito desta produção e desta distribuição, tão importantes para a cidade que terá sido tantas vezes deficitária. E quando falamos do cereal, então, era completamente deficitária. A exposição é de facto esta forma de como é que se resolveu este problema estruturante que era a falta de alimentação, uma preocupação como nós hoje também temos, afinal não estamos assim tão longe.

DSSSão muito poucas as exposições sobre a Lisboa Medieval, com estas temáticas. Essa faceta da cidade ainda está pouco estudada?

AA – Eu não diria que as exposições são poucas, eu diria que não são mesmo nenhumas. Que eu me recorde, não há nenhuma desde os tempos longínquos das décadas finais do século XX, quando a Doutora Irisalva Moita começou por ser a primeira pessoa a fazer arqueologia de uma maneira sistemática em Lisboa e desenvolveu algumas exposições. Que me recorde, não creio que tinha havido mais nenhuma. A cidade de Lisboa tem uma dimensão cujo estudo implica o desenvolvimento de equipas, porque o volume documental que é trazido dos arquivos, mas também o volume já na prospeção arqueológica realizada no subsolo da cidade de Lisboa, é de tal maneira vasto, sobretudo para os séculos XIV e XV, que nos parece completamente impossível ser feito por uma pessoa individual.

Felizmente, tivemos recentemente uma tese que teve Lisboa como centro de desenvolvimento, com um colega da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Manuel Fialho. Mas na verdade, Lisboa precisava de ser estudada sistematicamente porque é, também, uma cidade modelo para outras práticas urbanísticas, sociais e económicas que são aplicadas, que são replicadas em outras cidades no Reino, de uma forma talvez mais clara nas cidades portuárias. Isto porque Lisboa é o grande porto português e a cidade mais influente nesse âmbito, com uma verdadeira escala internacional.

Temos também que recordar que nas cidades portuguesas nós tínhamos sobretudo mais vilas que cidades, as cidades são uma realidade da contemporaneidade e Lisboa era a única cidade com dimensão europeia, enquanto que todas as outras eram pequenos núcleos urbanos, a maioria com uma escala muito diversa. A nossa rede urbana era medieval, nesse aspeto um pouco assimétrica, uma grande cidade que era centro de poder, que era o principal cenário de instalação dos monarcas a partir da segunda metade do século XIII e que confunde a sua história com a história nacional, digamos assim, com a história do Rei.

Portanto, há muita investigação a fazer e realmente consideramos que Lisboa merecia um projeto de investigação subsidiado, apoiado, com vários anos para o desenvolver, mas torna-se difícil. As orientações mais recentes da FCT não olham para este tipo de projetos como prioritários para o país, procurando muito os estudos comparativos, enquanto nós ainda temos o trabalho fundamental para fazer, que é verdadeiramente fazer investigação de base.

Isto espelha algum atraso em relação às grandes cidades europeias que já estão perfeitamente estudadas. Por exemplo Paris ou Londres têm centros de investigação só sobre a cidade, coisa que nós não temos e que precisávamos de ter. Outras cidades mais pequenas, como  Amesterdão e até Bruxelas, têm a parte medieval completamente estudada.

ASPFica aqui o repto.

AA – Exatamente, fica aqui o repto aos nossos jovens investigadores a ver se se animam a estudar Lisboa medieval, porque está cheia de surpresas! E nós, enquanto estivemos com este trabalho que fizemos para a exposição, aprendemos coisas que não eram conhecidas, que a documentação revelou, e o que ficou foi “água na boca” para continuar a desenvolver estas temáticas e podermos realmente ter um conhecimento de Lisboa medieval, que achamos que explica depois os esplendores de Lisboa capital, do império no século XVI, que não é por acaso. A Idade Média é, em grande parte, também a chave do que vai acontecer no século XVI.

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