Mário Sá-Carneiro: a vida num “Quási”

Nasceu para viver apenas 25 anos, mas o seu legado poético permanece intemporal. Mário Sá-Carneiro influenciou a criação de heterónimos de Fernando Pessoa, seu grande amigo, e juntos fundaram a revista Orpheu. Uma vida cheia num curto espaço de tempo.

Insatisfação. Esta é a palavra que descreve a poética de Mário Sá-Carneiro e toda a curta vida que levou, em breves 25 anos. O poeta, também escritor de novelas, peças de teatro e de contos, dispersava-se no seu próprio eu e isso espelhava-se na obra, com os traços característicos do modernismo.

“Mário de Sá-Carneiro viveu uma vida de relâmpago, não de um relâmpago de nada, mas de um relâmpago de tudo”, escreve Paula Cristina Costa, investigadora no Instituto de Estudos de Literatura e Tradição (IELT) e professora no departamento de Estudos Portugueses da NOVA FCSH, no artigo (2016) sobre o poeta. Foi a 19 de maio de 1890 que nasceu, em Lisboa, um dos grandes poetas do modernismo.

A obra mais emblemática de Sá-Carneiro, A Confissão de Lúcio, caracteriza-o nas suas angústias e modo de ver a vida. A personagem Lúcio é quase uma cópia de Sá-Carneiro, refere a investigadora, e o enredo é o desejo de alcançar a perfeição de Ricardo, outra personagem da obra: “Todo o drama desta narrativa se desenrola em torno do desejo de o Eu possuir o Outro, ou seja, de Lúcio possuir Ricardo e vice versa”. O triângulo amoroso de Lúcio com Marta, mulher de Ricardo, deslinda um final de tragédia: Marta desaparece e Ricardo morre.

Esta obra, segundo Paula Cristina Costa, revela o desejo de Sá-Carneiro em ser o outro, de viver intensamente e, por fim, quando tudo estiver feito, perecer. É por esta razão que as personagens do poeta são suicidas. Com sentimento semelhante de insatisfação da vida, Fernando Pessoa e Sá-Carneiro tornaram-se grandes amigos. Foi em 1912, quando Sá-Carneiro residia em Paris, que a troca de correspondência entre os dois sedimentou o companheirismo e a amizade.

Nesse início do século XX, Mário Sá-Carneiro assistiu ao despertar de vanguardas como o cubismo, na personalidade de Picasso, e o futurismo, na obra de Marinetti. As trocas de correspondência com Pessoa sobre estas correntes inspiraram-no, pelo que “a criação destes ismos por parte de Pessoa, e quem sabe senão também dos heterónimos, talvez nunca tivesse acontecido sem a cumplicidade de Sá-Carneiro”, afirma Paula Cristina Costa.

Da amizade que os unia e de traços de personalidade tão semelhantes, o entusiasmo deu origem aos conhecidos ismos do modernismo português: o interseccionismo, o sensacionismo e o paúlismo. A revista Orpheu nasceu à distância de cartas entre os dois amigos, um sonho que se concretizou “não apenas por ter sido o seu pai [o pai de Mário Sá-Carneiro] que financiou os dois primeiros números da revista publicados, mas sobretudo porque, com um entusiasmo desmedido, a sonhou e preparou à distância com Pessoa”.

A 26 de abril de 1916, pouco antes dos seus 26 anos, Mário Sá-Carneiro decidiu acabar com a própria vida. Três anos antes, em janeiro de 1913, tinha escrito a Fernando Pessoa “Eu sou daqueles que vão até ao fim”. E foi, três anos depois. Em Lisboa, existe uma rua em sua homenagem.

Um pouco mais de sol – eu era brasa,
Um pouco mais de azul – eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa…
Se ao menos eu permanecesse aquém…

Assombro ou paz? Em vão… Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho – ó dor – quase vivido…

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim – quase a expansão…
Mas na minh’ alma tudo se derrama…
Entanto nada foi só ilusão!

Excertos do poema “Quási”, in Dispersão

Fotografia: Frame retirado do documentário “O estranho caso de Mário de Sá-Carneiro”, de Paulo Seabra e José Mendes, disponível aqui.

Escrito por
Ana Sofia Paiva
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