Lisboa: “espaço de fala” da contestação brasileira

Há quase 47 anos, Lisboa foi cenário de uma das mais marcantes revoluções pela liberdade. Hoje, continua a sê-lo, pela mesma causa, noutras vozes. Uma investigação em Estudos Urbanos analisou a forma como migrantes brasileiros ocuparam as ruas de Lisboa para se manifestarem contra o então candidato às eleições presidenciais Jair Bolsonaro.

Lisboa é casa de milhares de pessoas de diferentes culturas, quer tenham nela nascido, quer a ela tenham chegado e se apaixonado pela sua cultura e beleza. Símbolo da multiculturalidade, da juventude, da cultura, da arte, do fado, da boa comida portuguesa e de tantas outras coisas, Lisboa é também a capital da liberdade e democracia. Palco de uma das mais recentes revoluções da história contemporânea, a Revolução dos Cravos, Lisboa afirma-se enquanto espaço público de eleição na luta pelas liberdades e direitos, não só a nível nacional, mas também internacional.

O ativismo político de migrantes brasileiros, feito a partir das ruas, avenidas, largos e praças da cidade de Lisboa, contra a contingência política que se vive no Brasil e que contrasta com tudo aquilo que a democracia deve ser, é exemplo disso.

Maria Runkel Cardoso, licenciada em Antropologia e mestre em Estudos Urbanos pela NOVA FCSH, analisou a contestação brasileira acerta da situação que se viveu naquele país feita precisamente nas ruas de Lisboa, entre 2018 e 2019, na sua dissertação de mestrado, intitulada A rua como espaço de fala: contestação de movimentos migrantes sobre a política no Brasil a partir de Lisboa.

Habituada a uma vida nos subúrbios, só quando ingressou no ensino superior e teve de passar mais tempo em Lisboa é que começou a olhar para a cidade com outros olhos e a perspetivá-la de outro ângulo: “foi na faculdade que comecei a compreender melhor e a frequentar mais a cidade  e a envolver-me também mais nas ações”. Na altura em que começou o seu mestrado estavam a emergir manifestações nas ruas da capital e Lisboa estava a transformar-se “numa arena de discussão política”.

Em finais de setembro de 2018, as ruas lisboetas foram invadidas por gritos de #EleNão, autênticas molduras humanas pintavam as ruas em protesto, com cartazes feministas e antirracistas, e uma grande manifestação foi organizada na Praça Luís de Camões contra o candidato às eleições presidenciais no Brasil, Jair Bolsonaro. A situação do Brasil era a questão mais falada em Lisboa nessas últimas semanas e a cidade estava atenta ao que lá se passava. As ruas era ocupadas por brasileiros que se agitavam à distância com o que acontecia no Brasil: ”A altura do início da minha tese coincidiu com as eleições no brasil, logo as manifestações eram imensas e havia muito para trabalhar ali. O meu objetivo passou por acompanhar e compreender de que forma é que os coletivos de migrantes brasileiros pensam a questão política do seu país de origem e ocupam as ruas de Lisboa como consequência”, explica Maria.

Maria acompanhou de perto as comunidades mais ativas, das quais se destaca o Coletivo Andorinha: “acabei por juntar-me a estes coletivos e a ajudá-los durante nove meses. Envolvi-me, fiz entrevistas e ajudei no que pude”, conta.

 

O Coletivo Andorinha e a sua ação política em Lisboa

A criação do Coletivo Andorinha, e de vários outros núcleos de migrantes brasileiros em Lisboa, continua a contribuir para que os migrantes brasileiros que chegam encontrem uma nova “casa”, uma sensação de pertença e um espaço de familiaridade e aconchego que seria mais complicado, pelo menos no início, caso não existissem estes grupos. O Coletivo Andorinha nasceu em 2016, pelas mãos de um conjunto de migrantes brasileiros determinados, como um coletivo suprapartidário, fruto do “golpe” que levou à destituição de Dilma Rousseff, a primeira mulher eleita democraticamente como presidente do Brasil.

Enquanto migrantes brasileiros em Portugal, têm consciência de que “é preciso internacionalizar a luta pela democracia” e, por isto, a sua ação passa por organizar manifestações e ações, nas ruas de Lisboa, para denunciar o avanço da extrema direita conservadora que ameaça atualmente o Brasil e que tem crescido um pouco por todo o mundo, colocando também na agenda política portuguesa a situação brasileira, afirmando como um dos seus objetivos “deixar uma presença na cidade fazendo com que seja possível em Lisboa pensar ativamente o Brasil.”

Neste contexto, Maria faz uma clara distinção entre dois tipos de migrantes brasileiros em Portugal: “há os que vêm para Portugal com bolsas, com trabalhos e com contactos, com uma nova perspetiva de trabalho e depois existe toda uma outra camada de migrantes, que saem do Brasil por razões económicas e num contexto completamente diferente”. As pessoas com quem trabalho na investigação pertencem a uma classe média “confortável”, assume. “Estou a falar de imigrantes brasileiros com formação académica elevada, com aspirações dentro da academia, e que isso não é o todo da imigração brasileira em Portugal, porque esta representa uma grande percentagem e não consegui incluir todos”.

A Praça Luís de Camões como palco principal

O principal local para organização de manifestações do Coletivo Andorinha, em Lisboa, é a Praça Luís de Camões: uma das primeiras coisas que vemos ao subir as intermináveis escadas da estação de metro Baixa-Chiado. A escolha deste local é logística, na medida em que, de modo a fazer ações organizadas, é preciso ter autorização da Câmara Municipal de Lisboa e considerar a questão da eletricidade devido ao sistema de som. Além desta questão logística, há também a dimensão estratégica do local – a Praça Camões é um sítio que, embora seja um sítio de passagem, tem possibilidade de juntar várias centenas de pessoas, tal como afirma um dos ativistas, que preferiu ficar no anonimato. “É um espaço amplo, pode colocar 50 pessoas como 300, e comporta”, e, nesta medida, não compromete a circulação das pessoas.

Sendo também um ponto turístico, acaba por conferir maior visibilidade às ações, uma vez que se trata de um local agitado, visível, habitado por locais e turistas, sendo ainda um ponto com facilidade de acesso, por via de transporte público ou privado, inclusive com facilidades de estacionamento.

No entanto, não é apenas do ponto de vista funcional e logístico que este local se destaca. Inicialmente podemos fazer uma associação entre este local e a sua proximidade ao Consulado Brasileiro em Lisboa, que pode ter servido como um factor extra, despoletador da escolha desta Praça como local central do ativismo do grupo; no entanto, após a mudança de local do Consulado, permaneceu o Camões como ponto central das manifestações.

Maria Runkel compreende que este espaço é mais do que apenas uma facilidade logística e geográfica. Passou a fazer parte da essência do próprio grupo. A Praça Luís de Camões tornou-se no verdadeiro palco destes migrantes ativistas, que, pela sua permanência, insistência e centralidade, sedimentou uma relação com o espaço da cidade, na procura de uma voz que seja ouvida e reconhecida.

Neste palco, tão amplo e central, constroem-se memórias e ligações que se vão transformando como o próprio arquivo da estrutura central do grupo, e a própria alma da luta brasileira fica ali simbolicamente gravada. É o que afirma um membro do Coletivo: “É um espaço emblemático das manifestações de brasileiros aqui. Quase todas as manifestações ligadas à migração, racismo, todas as manifestações da história do Coletivo Andorinha são ali, foi por essa razão, não por uma razão específica, mais para seguir a onda.”

Maria conta-nos um episódio que traduz esta visão da Praça Luís de Camões como um lugar central de manifestação já sedimentado: “Quando a Marielle foi assassinada, juntaram-se todos no Camões, sem manifestação e sem combinar, porque o Camões transformou-se neste sítio quase de peregrinação onde podes encontrar pessoas que estão a passar pelo mesmo que tu”.

Para Maria, esta é a cidade da esperança: “o poder que Lisboa tem, nem ela sabe, vamos nós tentar aproveitá-lo”.

Escrito por
Adriana Vieira
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