“Partir da viola” para entender o lugar de Amadeo de Souza-Cardoso na revista Orpheu

Trou de la Serrure Parto da Viola Bon ménage Fraise Avant-garde é o extenso título de um quadro de Amadeo de Souza-Cardoso. Fez parte da exposição individual na Liga Naval de Lisboa, em 1916, agora evocada pelo Museu do Chiado até 24 de fevereiro de 2017. É também o mote para Marta Soares, investigadora da NOVA FCSH e uma das curadoras da atual exposição, discutir o lugar de Amadeo na revista modernista Orpheu.  

O título é a pista para entender a obra. Trou de la Serrure Parto da Viola Bon ménage Fraise Avant-garde (1914-1916) funciona como legenda do quadro. “Trou de la serrure” significa “o buraco da fechadura”, camuflado na ala direita. “Fraise” significa “morango”, bem visível. O “parto da viola” traduz uma antropomorfização dos instrumentos: a viola parece ter um olho; o cavalete esboça um nariz. Mas “parto” também pode tornar-se o verbo da frase “Eu parto da viola para fazer o quadro”.

E Marta Soares, autora da tese de mestrado “Amadeu e Orpheu: para o desenvolvimento das relações enre Amadeo de Souza-Cardoso e a revista Orpheu” em História da Arte da NOVA FCSH (2014), “parte da viola” para posicionar o quadro no sensacionalismo de Fernando Pessoa, que elegeu a revista Orpheu como órgão desse movimento. As sensações dos objetos – quer sejam exteriores quer sejam do foro psicológico – são a matéria prima da atividade artística. “As sensações visuais, auditivas, gustativas, olfativas e tácteis são pertinentes, segundo Pessoa/Campos, por libertarem a literatura das convenções associadas aos registos sentimentais”, refere a autora no capítulo 1 da tese.

Os elementos que o título do quadro destaca remetem para experiências sensoriais – o buraco da fechadura estimula o olhar, a viola é associada ao som e o morango apela ao gosto. Marta Soares identifica também o potencial sinestésico do “buraco da fechadura”, que permite simultaneamente ver e ouvir alguma coisa.

Amadeo e Almada

Almada Negreiros teve um papel ativo na componente pictórica da revista Orpheu. Embora sendo uma revista literária, contou com a colaboração de um artista plástico – Santa-Rita, no segundo número, e de Amadeo na Orpheu 3, número que nunca chegou a ser lançado por falta de financiamento. Também se desconheciam que quadros do pintor seriam publicados, porque Almada nunca chegou a revelar os quatro “hors-textes” (elementos não textuais). No entanto, após a publicação da tese, Marta Soares encontrou no espólio de Amadeo quatro fotografias que, avança neste artigo (2015), serviriam, com alta probabilidade, de base para publicação na Orpheu 3: Arabesco dynamico = REAL ocre rouge café Rouge ZIG ZAG Vibraçoens metalicas (esplendor mecano-geometrico) (1915-1916), Par ímpar 1 2 1 (1914-1916), Oceano vermelhão azul cabeça AZUL (continuidades simbólicas) Rouge bleu vert  (1915) e também Trou de la Serrure Parto da Viola Bon ménage Fraise Avant-garde (1914-1916).

Almada Negreiros e Amadeo de Souza-Cardoso conheceram-se em 1916, durante os preparativos da primeira exposição individual – e única em vida – de Amadeo de Souza-Cardoso, comissariada pelo próprio, na Liga Naval de Lisboa. Diz Marta Soares que Almada sempre enalteceu Amadeo e em torno dele criou “um culto do génio pintor”. Prova disso é o elogio que lhe faz na altura: “Amadeo de Souza-Cardoso é a primeira descoberta de Portugal na Europa do século XX (…) por isso que a descoberta do caminho marítimo para a Índia é menos importante que a exposição”.

O texto que contém essa citação é recuperado na exposição “Amadeo de Souza-Cardoso Porto/Lisboa 1916/2016”, patente no Museu do Chiado entre 12 de janeiro e 24 de fevereiro de 2017 (esteve antes no Porto, à semelhança de 1916), comissariada por Marta Soares e Raquel Henriques da Silva, também investigadora da NOVA FCSH. São 81 obras em exposição, provenientes de 52 instituições públicas e 29 coleções privadas. Também lá estão  Trou de la Serrure Parto da Viola Bon ménage Fraise Avant-garde, uma ocasião para explorar que sensações encerra cem anos depois, e quatro fotografias com anotações no verso que anunciam a colaboração de Amadeo na Orpheu 3.

Escrito por
Dora Santos Silva

Professora do Departamento de Ciências da Comunicação da NOVA FCSH. Coordenadora editorial do +Lisboa.

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