Percorrer Lisboa através das palavras dos escritores pode ser uma viagem sem fim. Ana Isabel Queiroz, investigadora da NOVA FCSH e coordenadora do projeto “Atlas das Paisagens Literárias”, conduz-nos por espaços, dos mais literais aos imaginários.
O Atlas das Paisagens Literárias reúne excertos de livros desde o século XIX com referências a locais do país, incluindo, claro, Lisboa. Como surgiu a ideia de reconstruir a paisagem através da literatura?
Este projeto surgiu na sequência do meu doutoramento: debrucei-me sobre a literatura e a paisagem focadas em Aquilino Ribeiro e na sua obra “Terras do Demo” [1918]. Sou da área de arquitetura paisagística e a reconstituição da paisagem e da sua evolução a partir deste escritor e desta obra em particular, na qual retratou a zona da Beira Alta, é brutal.
Terminei o doutoramento em 2007 e nessa altura comecei a pensar que poderia alargar a investigação sobre paisagens literárias a mais escritores e a outro arco temporal. Concorri, passado um ano, a Investigador Ciência já com um projeto de paisagens literárias, ainda sem o nome de Atlas.
A app do projeto foi lançada em 2012. Que balanço faz, seis anos depois?
O projeto não acabou. Teve um primeiro fôlego, mas este projeto nunca acaba porque é possível dinamizar outras leituras e a app recebe conteúdos à medida que vão sendo carregados na base de dados. Se eu fizer uma nova leitura e acrescentar informação, esta fica disponibilizada logo que seja validada.
O livro “Lisboa nas narrativas – Olhares do exterior sobre a cidade antiga e contemporânea”, que coordenou, resulta deste projeto?
O livro está enquadrado no Atlas das Paisagens Literárias e resulta de um workshop muito interessante e participado que decorreu no Palácio Belmonte. Foram dez dias intensíssimos com pessoas a carregar excertos de livros na base de dados, a discutir com os escritores. Foi um conhecimento muito pessoal, próximo e afetivo com escritores portugueses que descreviam a cidade de Lisboa, que a conheciam muito bem, alguns deles nascidos e criados nela, mas também com escritores estrangeiros que tinham vindo esporadicamente à cidade de lisboa ou que, em alguns casos, nunca tinham vindo a Lisboa mas que a imaginavam. Há um filme, realizado pelo meu filho, que retrata esses dez dias intensíssimos.
Quem são “os” escritores de Lisboa?
Tal como Lisboa evoluiu ao longo do período em que o projeto olha para ela –do século XIX até agora – também evoluíram as representações na literatura. É difícil escolher um único escritor porque ele só reflete uma determinada cidade que conheceu, a sua posição relativamente a ela. Eça de Queiroz não podia representar a Avenida de Roma porque ela pura e simplesmente não existia. O que é importante é ter a ideia de dinâmica, a literatura reflete na plenitude a dinâmica do meio urbano. Portanto, é possível identificar escritores que dão de Lisboa uma perspetiva mais literal e outros que dão uma perspetiva mais imaginária.
No roteiro literário promovido pelo FCSH +Lisboa, privilegiou o literal…
Nos percursos literários, é necessário escolher escritores mais literais para as pessoas não se dispersarem. Por exemplo, não temos no roteiro nenhum excerto de Pessoa porque ele não é literal na sua representação. Pessoa é claramente um escritor da cidade de Lisboa. Toda a ambiência que transmite quando escreve como Bernardo Soares é uma ambiência que lhe vem da nostalgia que ele sente dentro da cidade e possivelmente vivendo noutro sítio essa descrição seria diferente.
No âmbito dos escritores literais do século XIX, eu diria que o escritor de Lisboa é Eça – talvez seja o que mais manancial nos trouxe. Também gosto muito de Fialho de Almeida, cujas crónicas sobre Lisboa são absolutamente fantásticas.
E na contemporaneidade?
Mais do que escritores, há livros de que gosto muito: Enseada Amena (1965) de Augusto Abelaira, por exemplo. Esse livro até nos explica porque Lisboa se chama Lisboa: tem origem nas palavras fenícias “enseada” e “amena”. É um livro que reflete a cidade vivida, a imaginada e a cidade que o narrador conhece do passado. Esta dinâmica da paisagem urbana é algo que eu aprecio muito nos escritores.
De outro ponto de vista, o livro do Rui Cardoso Martins, Deixem Passar o Homem Invisível [2009], já do século XXI, tem muitas referências à Lisboa do terramoto e consegue ligar a Lisboa de várias épocas. Para quem gosta de história e de paisagens literárias, estes são escritores a não perder.