Lisboa em Metamorfose, João Seixas, 2021 | FFMS, Coleção "Ensaios da Fundação"

João Seixas: “A política continua a não perceber o que é que as cidades realmente necessitam”

“Lisboa em metamorfose” é o ensaio assinado por João Seixas, investigador do CICS.NOVA da NOVA FCSH, onde reflete sobre a evolução contemporânea da capital. São seis décadas de políticas, urbanismo, geografias e economia que demonstram as diferentes faces da “cidade de cidades”, um organismo vivo em contínua transformação.

O próprio nome do ensaio é uma provocação. A palavra Metamorfose tem diversos significados, mas possui um denominador comum: mudança. E é sobre essa mudança – profunda e repentina, mas ainda a acontecer – que João Seixas, investigador do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA) da NOVA FCSH, escreveu o ensaio para a Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS).

O Passado, a Explosão e a Transição guiam o leitor pelos acontecimentos dos últimos 60 anos, e o Horizonte indica o que ainda está por vir porque “entre extraordinárias potencialidades e exasperantes fragilidades, Lisboa encontra-se, de novo, em metamorfose”. As políticas urbanas, as diferentes economias, a habitação, o turismo e a sustentabilidade fazem parte deste rol de mudança, que são colocadas em perspetiva e de uma maneira descritiva em pouco mais de 150 páginas.

Nesta conversa falou-se sobre o setor da habitação, do urbanismo, do plano (inédito) da nova estratégia regional da Área Metropolitana de Lisboa (AML) para 2030 e ainda sobre os desafios que espreitam o futuro da capital.

João Seixas, investigador do CICS.NOVA da NOVA FCSH, refere que há quatro grandes desafios para Lisboa

São 60 anos da metamorfose de Lisboa resumidos em mais de 150 páginas. Porque é que considerou que este era o momento para refletir sobre as políticas urbanas e demográficas de Lisboa ao longo de seis décadas?

Em primeiro lugar porque fui convidado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) para a escrita deste ensaio, numa coleção que chega à sociedade, muito mais do que os nossos textos, artigos e livros mais académicos. Aliás, o ensaio não tem propriamente referências bibliográficas, tem no final uma seção “Para Saber Mais”. É um ensaio de divulgação científica. E eu considero que nos tempos atuais, precisamos de difundir conhecimento e reflexão científica  para a comunidade, de comunicar as grandes questões contemporâneas. Achei assim que era um trabalho importante que devia fazer. E ainda mais tratando-se de uma dimensão que em Portugal ainda está muito pouco trabalhada. Ainda há pouco conhecimento social e político, não académico propriamente, sobre as questões da cidade e sobre as questões urbanas.

O livro é sobretudo descritivo, conta uma história. A história desta cidade/metrópole dos últimos 60 anos. Procurei ser mais descritivo do que prescritivo – esse é outro livro que tenho na cabeça, já escrevi bastante sobre o assunto. Hoje em dia em dia confunde-se muito descrição com prescrição, convém ter consciência que são coisas diferentes. Embora uma boa descrição convide, desde logo, ao pensamento e à formulação de prescrições para o futuro.

Como Oriol Nel•lo referiu, existem “cidade de cidades” e Lisboa é um desses exemplos. O professor escreveu no seu ensaio que “Lisboa detém um caráter de cidade consideravelmente aberto e multicultural”, nem sempre valorizado. O que acha que falta fazer para que estas múltiplas cidades se entreajudem?

Lisboa não é uma cidade, não é um município, são várias cidades, é um enorme ecossistema. Cresceu muito, desenvolveu-se muito nestas seis décadas de uma forma muito pouco pensada; primeiro de uma forma muito repentina, sobretudo a partir da década de 60/70, por isso há um capítulo intitulado “Explosão”, uma explosão em poucos anos. Três, quatro décadas em que a metrópole explode, décadas que na longa vida de uma cidade como Lisboa não é muito, mas que vão alterar radicalmente a sua estrutura. Também por isso chamei metamorfose ao ensaio: é uma transformação no corpo e na alma de um ser, que não deixa de ser o mesmo ser, mas que se metamorfoseou em pouquíssimo tempo, de uma forma repentina.

E porquê de uma forma repentina? Por várias razões, entre as quais a forma como Portugal não foi olhando e percebendo as suas cidades, e não consolidando uma cultura, uma escola de conhecimento urbano e urbanístico, foram sempre muito parciais e não influentes esses conhecimentos. Claro que se desenvolveram alguns bairros, algum tipo de urbanismo e construção de urbanidade em Lisboa e no Porto, em algumas cidades médias, mas se não consolidou uma escola forte e com influência política, de planeamento urbano.

E isso ainda hoje se reflete muito.

Ainda hoje, sim, a par dos atrasos no desenvolvimento social e económico do país. A partir dos anos 60 dá-se uma emigração tremenda para fora do país, mas também há um êxodo rural para as cidades e que se acentua fortemente – já vinha de décadas anteriores – sobretudo para Lisboa e para o Porto. Um afluxo muito pouco pensado, muito mal governado pela política. O que faz com que se suceda uma grande fragmentação e ocupação do solo. Dão-se dois movimentos estruturantes: há um movimento das regiões rurais para as grandes cidades, mas esse movimento não corresponde a uma densificação das malhas urbanas existentes ou construídas. Há também um outro movimento interno às áreas metropolitanas, de periferização, de uma enorme suburbanização.

Assim, a proporção da metrópole face ao país, que era em meados do século XX de 15%, passa para quase 30% em 2011. E por seu lado, dentro da metrópole, a população central do município de Lisboa, que era de 60% em meados do século XX, passa para 20% em 2011. Agora em 2021 parece dar-se uma certa estabilização dos grandes números, mas atenção não dos números mais finos e detalhados. Ao longo destes 50 anos, há cerca de 60 novos fogos, por dia em média, só na AML. Não obstante, esta não é uma história demasiado específica, é uma história que aconteceu em muitas outras metrópoles espalhadas pelo mundo. Mas em Lisboa, repito, sucede-se de uma forma tardia, repentina, muito expressiva e pouco governada.

Lisboa em Metamorfose, João Seixas, 2021 | FFMS, Coleção “Ensaios da Fundação”

No ensaio, o professor refere três momentos chave na cidade: o passado, a explosão e a transição. Este passado foi pautado por vários acontecimentos e um deles é o movimento que se sente do centro para a periferia. Este movimento teve um forte impacto que ainda hoje se sente? Estas assimetrias ainda hoje são palpáveis?

São bastante palpáveis. Embora hoje em dia as dinâmicas principais de uso e de mobilidade nos territórios, são e serão cada vez mais, com a transição digital e ecológica, diferentes daquilo que foram na segunda metade do século XX. A explosão da metrópole dá-se sobretudo por necessidades habitacionais e uma correspondência dos mercados – financeiros, imobiliários, da banca – e da política para corresponder a essas necessidades habitacionais. Quando a democracia chega a Portugal, constrói-se, com sucesso, um Serviço Nacional de Saúde (SNS), uma estrutura de educação pública, uma estrutura de Providência Social, de Segurança Social, de apoio aos mais necessitados – frágil ou forte isso é outra questão, é outro ensaio –, mas não se constrói uma política social de habitação. Deixa-se sobretudo ao mercado essa construção.

É evidente que qualquer tipo de política deve incentivar os mercados para os bens que as sociedades e os bens comuns necessitam. Mas há uma componente política essencial, de estratégia política, que no caso da habitação foi sempre muito parcial. Posicionou-se alguma política de habitação social, mas não se estruturou uma política social de habitação, que é consideravelmente diferente. Isto conjugado com outro fator, que vinha detrás, e que foi apenas parcialmente resolvido, décadas e décadas de rendas antigas congeladas, a par da contínua urbanização da periferia. A certa altura no ensaio eu falo em congelamento do centro e urbanização da periferia, o que é um erro capital.

As políticas de apoio ao acesso à habitação foram feitas sobretudo através do crédito bonificado e como tal pela propriedade privada. Ao mesmo tempo que se acentua uma crescente fragilização dos mercados de arrendamento. Uma cidade dinâmica necessita de um mercado de arrendamento dinâmico. Mas também um mercado de arrendamento justo, acessível e estes atributos têm continuamente falhado para Lisboa. Por razões antigas e profundas, ainda hoje em dia há muita dificuldade em construir sólidas políticas de habitação.

Vimos de décadas de grandes desequilíbrios e de ressentimentos entre as diferentes partes, entre proprietários e inquilinos. Ressentimentos que trazem uma profunda carga ideológica. O que não ajuda à construção de políticas mais sustentáveis sociais de habitação. Em Portugal precisamos tanto de um mercado activo de habitação como de políticas de habitação acessível, quer em termos de aquisição, mas sobretudo em termos de arrendamento. E isto ainda não foi criado, está agora a ser tentado, mas continua com fortes ressentimentos do passado, e agora a par de poderosos agentes globalizados. Muitos países Europeus estão neste momento a reestruturar este sector e suas políticas porque já percebeu que é uma das mais graves situações, sobretudo para as novas gerações, a elevada precariedade habitacional.

Qual é o problema da questão do arrendamento, desta precariedade que Lisboa está a assistir?

Neste momento deparamo-nos, como país, como sociedade, mesmo Europa, com vários tipos de desigualdades sociais e espaciais, e de desfasamentos políticos. Estamos neste momento a aprofundar, e bem, as questões ecológicas e como é que as futuras gerações vão ter que gerir o grave défice ecológico que deixamos. Mas a par disso, há outro tipo de desigualdades: as desigualdades em termos laborais, em termos de rendimentos, e em termos habitacionais. As novas gerações estão com vários tipos de precariedade, o que é uma situação particularmente séria.

Por essas razões, são necessárias políticas sofisticadas e muito ativas de provisionamento de oportunidades de emprego, de provisionamento de oportunidades de habitação para as novas gerações. Como o emprego é hoje em dia muito precário, não podemos estar a construir propostas políticas de habitação que não se coadunem com a precariedade de rendimentos. Pode até em parte ser uma residencialidade relativamente flexível, mas ao mesmo tempo com segurança, com seguros de renda. O Estado deve ser mais ativo nesse aspeto. Desenvolvendo um parque habitacional público para os mais desfavorecidos e frágeis, como agora está previsto e inclusivamente com verbas do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). Mas [esta medida] não vai resolver a complexidade dos problemas habitacionais, sobretudo para as classes médias, baixas ou altas, que não estão a conseguir no mercado, pelo menos nos territórios onde há mais urbanidade, mais equipamentos, mais funções, ou seja, nas principais centralidades. E portanto, será necessário posicionar políticas para que as gerações mais jovens tenham acesso à cidade, com as suas oportunidades, e em simultâneo, estabilidade. Creio que está aqui uma das principais questões para o futuro do país.

“Para haver esta transformação política é preciso haver uma transformação de conhecimento, é preciso sabermos o que se passa e pensar sobre o que se passa”

Mas acha que Lisboa está a trilhar esse caminho ou é um caminho muito paulatino?

Não, ainda temos muito que trabalhar a nível político. A política continua a não perceber que é que as cidades realmente necessitam. Estamos a melhorar, no poder local as novas gerações percebem muito melhor as novas questões, mas ainda estamos com grandes desigualdades de entendimento daquilo que são os espaços e os tempos pertinentes da política sobre os territórios.

Logo no início do livro refiro que Lisboa tem extraordinárias potencialidades e exasperantes fragilidades. A principal fragilidade, a mais exasperante, é na dimensão política, em que temos uma estrutura político-administrativa que dificilmente se coaduna com os desafios do presente e do futuro. Temos decididamente que reestruturar a administração pública portuguesa. Fala-se, e muito bem, da regionalização e da descentralização. Considero que esses processos devem ser inseridos numa visão, numa estratégia mais global de reorganização da Administração Pública portuguesa. A descentralização e a eventual regionalização também beneficiarão muito com uma região de Lisboa mais dinâmica e melhor governada, é importante referi-lo. Para Portugal como um todo, é importante que estes debates incluam Lisboa e incluam a perspetiva de que a região de Lisboa e os seus territórios também beneficiarão com a reorganização do Estado e da Administração Pública.

Vejo pelo país algum crescendo de ressentimento em relação a uma entidade difusa chamada Lisboa, e compreendo porquê. Porque não estamos a conseguir fazer as reformas para o presente e para o futuro em importantes domínios, e seria muito salutar que esta reorganização fosse feita em benefício dos mais diversos territórios do país, da Guarda ao Algarve, do Porto a Lisboa. Estou convicto disso.

Mas para quem está fora do assunto, pensará que se está a beneficiar ainda mais a capital.

Mas convém não confundir o Terreiro do Paço com os Paços do Município. São estruturas, entidades e espaços muito diferentes. Os Paços do Município representam o poder local, que apesar de tudo no município de Lisboa é razoavelmente diferente de outros municípios.

A mais significativa fragilidade, no meu entender, é assim ao nível político. Mas há outras paralelas. Para se suceder uma transformação política é preciso suceder-se uma evolução no conhecimento, é preciso sabermos o que se passa e pensar sobre o que se passa. E espero, humildemente, ajudar com este ensaio para aumentar a reflexão sobre a importância das cidades e dos territórios como elementos centrais de desenvolvimento.

Neste processo de transição, o professor refere ainda que foi aprovado em 2020 o documento da nova estratégia regional da AML para 2030. Acha que este é o princípio de uma nova identidade à escala metropolitana?

Não é o princípio, porque as CCDRs (Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional) já existem há algum tempo e a AML também, mas é a primeira vez, no caso de Lisboa, [que] as CCDR de Lisboa e Vale do Tejo e a AML trabalharam em conjunto para desenvolver uma estratégia comum para a Região de Lisboa 2030. E isso é muito significativo, porque nunca tinham trabalhado desta forma estratégica em conjunto, porque as áreas metropolitanas estão com novas competências e responsabilidades e creio que devem ter mais no futuro, a par da consolidação de uma força regional. Parte significativa dos desafios de futuro do nosso país vão ser debatidos sobretudo a nível regional.

Acredita que até 2030 a AML vai conseguir os seus objetivos?

Não tenho a certeza. Somos ainda pouco conhecedores das realidades e necessidades contemporâneas dos territórios. Estamos a avançar, mas ainda há muito por conhecer e por interligar. Ao mesmo tempo que estão em curso novas transformações estruturantes: a era digital, as questões ecológicas, novas formas de utilização e de fruição dos territórios, novos tipos de famílias, novas vivências globalizantes. Muito está em transformação, o que sobreleva ainda mais, a meu ver, a necessidade de trabalharmos mais nas escalas pertinentes.

Há determinadas escalas pertinentes. Desde logo a escala da região, de que temos estado a falar. Mas outra escala importante é a escala do bairro. Em Portugal temos as Juntas de Freguesia, que são eleitas democraticamente, mas que têm ainda muito pouco poder. Deveriam ter mais competências, responsabilidades e recursos, a meu ver, para atuar a nível de proximidade. Prosseguimos esses objetivos com a Reforma Administrativa de Lisboa. Mas ainda falta fazer isso para o resto do país.

Em relação ainda à habitação e ao turismo, sabemos que antes da pandemia, Lisboa tinha cada vez mais turistas e provavelmente esse facto pode ter levado a esta explosão de Alojamentos Locais (AL) na cidade.

É reflexo dos desequilíbrios, não é fragilidade. O acentuar da economia do turismo em Lisboa é, no meu entender, reflexo quer das potencialidades como dos desequilíbrios urbanos e políticos. É evidente que Lisboa deve consolidar e mesmo reforçar o seu ADN de cidade aberta. As cidades devem ser abertas, recetivas para todos os migrantes, para todos os tipos de utilizações, quer seja uma vontade de residir uma vida inteira, quer de passeio, de usufruto e de lazer. Mas justamente por esta complexificação, deve ter uma capacidade de governação e de regulação muito mais ativa. Estes diferentes objetivos usos configuram temporalidades distintas, condicionando distintas formas de consumo, de sociabilidade, de pertença.

Sendo Lisboa uma cidade com um ADN de abertura, esta cultura deve ser mantida e mesmo reforçada. A abertura transmite uma capacidade de renovação, de conhecimento, de inovação, de evolução. Os sistemas fechados não são inovadores, não são resilientes. E sistemas abertos, recetivos ao diferente, nas várias escalas, são naturalmente mais ricos e fortes. A questão assim é mais como conseguir conciliar os diversos usufrutos da cidade em termos de diferentes temporalidades, consoante sejam três ou quatro dias, ou três ou quatro anos. Lisboa necessita de consolidar uma boa compreensão e gestão pública desta diversidade. Não a tem tido, no meu entender devido aos desequilíbrios de que já falei, do fraco conhecimento do que é a cidade e de um sobre-posicionamento de outras visões políticas e económicas.

Muitas das grandes questões para o futuro: Que tipo de turismo? Que novo aeroporto? Onde? Que ciclovias? Bom, todas estas questões devem ser debatidas em termos de um debate mais amplo, sobre modelos de progresso, sobre “que cidade e que região queremos para o futuro”. As principais questões serão essas, que cidade queremos para o futuro, que novo modelo de progresso é que podemos sustentar, em termos ecológicos, em termos de coesão, de produção, de rendimentos, de habitação, e a partir daí tomar decisões mais setoriais, a nível turístico, a nível de mobilidade, entre outras.

Para si, quais são os principais desafios a nível ecológico na cidade de Lisboa e para a AML?

Eu diria que há quatro grandes áreas de desafios. Um, no habitat. A regeneração dos habitats inclui um enorme esforço da habitação acessível, uma política muito mais musculada do que aquela que existe hoje e do que aquela que se propõe, que é visivelmente insuficiente, e sobretudo ao nível do arrendamento acessível para as novas gerações terem direito à habitação.

Segundo, sustentação de meios para a criação de oportunidades de emprego. Também aí o mundo está a mudar muito. Fala-se muito do Hub Criativo do Beato, há uns quantos fab Labs, eu acho que deveria haver um espaço de criação em cada quarteirão para experiências dos jovens. Uma política que pudesse ser não apenas em espaços e equipamentos públicos, mas também em espaços privados, em espaços cooperativos, em parcerias público-privadas, portanto, uma estratégia que pensasse todo este emaranhar destas dinâmicas de apoio, de necessidades, para toda uma enorme cidade, uma cidade de cidades. Estes fab labs em cada quarteirão não sendo apenas empresariais; também devem ser cívicos, com expressões culturais, com espaços de debate, de projeção de cidadania, de tudo isto misturado. Temos hoje uma série de equipamentos onde essa utilização podia ser feita: bibliotecas, teatros, hospitais, centros culturais… Mas precisamos de muitos mais. Potenciando mais aquilo que ainda estamos a dinamizar muito pouco.

Ainda há uma revolução einsteiniana a fazer nos usos e nas experiências da cidade. Conjugando de forma muito mais ativa os espaços e os tempos. E [isto] é o que me tem mais fascinado e que tenho trabalhado nos últimos tempos, de certa forma envolvendo uma revolução no próprio urbanismo. Um urbanismo que se tem sobretudo preocupado em disponibilizar espaços para as diferentes funções: habitar, trabalhar, comerciar, educar. E agora também devemos pensar nestes espaços em termos da utilização dos seus tempos.

O terceiro desafio é o ecológico, que sendo sistémico tem que ver com tudo o que temos estado a falar. Se utilizarmos os espaços de uma forma mais rica, não necessitaremos de consumir mais solo ou território. Até poderemos ter mais população, integrar mais migrantes. Tudo muito importante porque precisamos de densificar Lisboa. De reedificar e utilizar os espaços já construídos, uma visão positiva a todos os níveis, desde logo a nível ecológico. E aqui, mudando também os paradigmas da mobilidade e reduzindo a pegada carbónica.

Um quarto desafio, que poucas pessoas consideram – talvez aqui na NOVA FCSH considerem mais – liga-se à reconstrução das comunidades, aos sentidos de comunidade e de pertença. Encontramo-nos demasiado separados uns dos outros, estamos muito tribalizados, ainda mais agora com as redes sociais, o que é muito preocupante. A cidade pode e deve ser um território de encontro, de confronto, de junção de diferentes em construção comunitária. Para além do que normalmente se denomina de identidade. Não me agrada demasiado o conceito de identidade, é um conceito escorregadio e de certa forma perigoso. No território podemos e devemos ter muitas identidades, muitos seres diferentes, e essa é uma grande riqueza.

Georg Simmel, famoso sociólogo que escreveu há cerca de cem anos A metrópole e a vida mental, um dos seus escritos chama-se O Estrangeiro, onde diz que o estrangeiro é um espelho, são os olhos da nossa comunidade. Esta é uma mensagem muito importante. Outra famosa pensadora do século passado, a Hannah Arendt, também dizia que não gostava demasiado do conceito de identidade. Por razões mais que compreensíveis. Ela defendia comunidades abertas e com indivíduos muito diferentes, um diferente conceito de comunidade. E como podemos fomentar isso, nas cidades? Bom, desde logo através de sólidas políticas de planeamento e urbanismo, entre as quais de habitação acessível. Mas também fomentando a mistura através de centros cívicos, de maior participação pública e política, de concelhos de bairro e de cidade. Com os smartphones, que em breve vão estar nos nossos óculos – aliás, alguns já estão –, vamos ter essa capacidade de interligação muito mais ativa. Mas atenção, capacidade não é garantia de tal acontecer. Até agora os sistemas tecnológicos têm sido sobretudo de disponibilização de fruições, de consumos, são ainda sistemas muito fechados. Os sistemas tecnológicos devem estar baseadas em estruturas mais abertas.

Veja-se o user friendly – é-se user friendly de acordo com determinados e controlados padrões. Muito mais interessantes serão os sistemas que não sejam apenas user friendly, mas sim aqueles cujas apps, cuja ação, também se enriqueçam de forma aberta. E aqui há um trabalho interessantíssimo a ser feito na área das smart cities que até agora tem sido sobretudo de controlo: saber se o caixote do lixo está cheio, saber se o semáforo abre ou não… será muito mais interessante – e essencial, mesmo a nível político e da democracia – que as tecnologias se baseiem mais na cooperação. Isso será um salto quântico.

“E o direito à cidade não é apenas na Almirante Reis, é também no Cacém, é também no Pinhal Novo”

Quando escreveu este ensaio, na pandemia, Lisboa parou, refletiu, respirou?

A pandemia impactou profundamente nas cidades porque as cidades são locais de confluência da humanidade. Mas como disse um famoso jornalista de ciência na revista Wired, os impactos não se trataram tanto de uma questão de quilómetros quadrados, mas sim uma questão de metros quadrados. Metros quadrados no direito à habitação, na qualidade laboral, na qualidade dos transportes públicos. A geografia das desigualdades é extraordinariamente fina, não é a traço grosso. E precisamente por ser muito fina, temos de trabalhar com grandes princípios, bem como com grandes capacidades regionais estratégicas, e finalmente a um nível de muito trabalho de proximidade.

E a pandemia acelerou essas desigualdades. 

A pandemia acentuou as tendências que vinham de trás, quer as boas quer as más. Acentuou as fragilidades sociais e económicas, e acentuou as capacidades digitais e comunitárias. Se estamos a aprender com tudo isto, não lhe sei responder. Ainda não tenho a certeza se quando passar este período pandémico mais intenso – já estamos há quase dois anos nele – se vamos passar isto com mais capacidade de inovação e de transformação, ou se com vontade de reincidir em receitas velhas.

Refere, e cito, “a cidade é uma vasta heteronímia, uma construção coletiva onde se encontram e confrontam uma miríade de interesses, de poderes e de estratégias”. Para si, que heterónimo será Lisboa no futuro?

Quero que sejam muitos, não quero só um! Lisboa será rica se tiver muitos heterónimos. Várias formas de pensar, vários feitios e possibilidades. E que saiba percebê-los e respeitá-los, pensando de forma mais estratégica. Mas que tenha muitos!

Que cidade será Lisboa, para si, em 2030?

 Posso dizer a cidade que desejaria: uma cidade de heterónimos, muito diversa, muito rica culturalmente, muito mais justa, uma justiça social mas também espacial, o direito à cidade a todos os níveis. E o direito à cidade não é apenas na Almirante Reis, é também no Cacém, é também no Pinhal Novo. E isso é um longuíssimo trabalho a fazer, que tem sido feito com grande esforço nas antigas periferias de Lisboa e nas ultraperiferias dentro da metrópole. Eu gostaria que houvesse aí o direito à cidade, muito mais justa, mais ecológica. Implicando para tal que seja politicamente muito melhor governada.

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Ana Sofia Paiva
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