Mário Castrim, o primeiro crítico de televisão que assim respondeu ao Estado Novo

Foi o primeiro a escrever críticas televisivas e o Diário de Lisboa o primeiro jornal a publicá-las. Mário Castrim escreveu mais de três mil críticas sobre o estado do país através da lente da televisão.

Todos o conheciam por Mário Castrim, mas o seu verdadeiro nome era Manuel Nunes da Fonseca. Foi jornalista, diretor do suplemento Juvenil do Diário de Lisboa e em 1965 começou a escrever críticas sobre televisão no Diário de Lisboa, tornando-se o primeiro crítico nesta área. Neste diário, o jornalista escreveu, até 1984, 3.600 crónicas e passou 70 mil horas em frente à televisão. Tudo para levar ao leitor o melhor e o pior da televisão portuguesa.

As 63 crónicas reunidas no livro “Televisão e Censura” (1996, Campo das Letras) são apenas uma parte das que foram vítimas do lápis azul do Estado Novo, entre 1969 e 1974. Mário Castrim decidiu reuni-las em livro, livres da censura, e dar a conhecer parágrafos inteiros que não viram a luz do dia, hoje analisados por José Manuel de Lencastre na dissertação de mestrado (2020) em História Contemporânea na NOVA FCSH.

A televisão começava a dar lugar à rádio e “O Canal da Crítica” surgiu como o espaço de pensamento e reflexão sobre a função do novo meio de comunicação. Mário Castrim considerava “a televisão um fenómeno social da maior importância na sociedade portuguesa, tornando a figura do crítico televisivo uma necessidade, devendo este impedir que o conteúdo televisivo fosse confundido com a realidade, com a própria realidade”, explica o autor.

As suas críticas, “audazes” e “mordazes”, desafiaram o Estado Novo não com ameaças, mas com uma caneta, através do poder da palavra. Os parágrafos do jornalista não se resumiam apenas aos aspetos de programação ou à técnica dos profissionais na RTP; pelo contrário, iam muito mais além: desafiavam o leitor a olhar e a refletir para a sociedade em que vivia e à situação política que se sentia na capital e no país.

Através da lente da televisão, Mário Castrim falava sobre as questões sociais e políticas do país: “A pretexto dos mais variados assuntos televisivos, vemos desfilar os portugueses, com os seus problemas por resolver, as suas questões por discutir, as suas esperanças no futuro, a par da crítica aos governantes do presente”, aspetos que lhe valeram a publicação de várias crónicas incompletas.

Mário Castrim, o primeiro cronista televisivo em Portugal. Créditos da fotografia desconhecidos

 

O recurso preferido do jornalista era a sátira e o humor, o que lhe permitiu criticar os conteúdos televisivos propagandísticos de forma subtil. Sendo Castrim católico ferveroso e militante do Partido Comunista Português (PCP), a sua visão na função da televisão estava direcionada para um horizonte de cultura e de aprendizagem, e não de manipulação política.

O crítico considerava a RTP aborrecida, sem inovação e um veículo para o embrutecimento da população, ao mesmo tempo que servia para alienar os telespectadores. Para ele, existia um excesso de entretenimento, “um dos males da televisão portuguesa”, uma programação sem surpresas. A caneta crítica foi também apontada aos profissionais, locutores, jornalistas e técnicos, pela falta de comunicação que sentiu nos programas e em aspetos amadores. A crónica “Vou-me embora pescar trutas” (apenas disponível no seu livro) é uma das que ilustram este descontentamento.

Nas suas críticas ainda houve espaço para as questões internacionais, como a Guerra Fria ou os Jogos Olímpicos de Munique, em 1972, e para a programação musical nacional. Já nas reportagens jornalísticas, o crítico sentiu que havia excesso de palavras e abordagens pouco profundas sobre os temas.

As críticas à RTP foram tão mordazes, que chegou a comparar a televisão a lixo. Para Mário Castrim, a solução era simples: “Se querem informar bem os portugueses, diversifiquem os depoimentos e debates com um leque variado de agentes sociais e políticos presentes na sociedade portuguesa”, escreve o autor.

Mário Castrim teve uma história digna de um livro próprio, enaltecido pelos colegas do Diário de Lisboa, como Mário Zambujal, Cesário Borga ou Alice Vieira, a segunda e última esposa, testemunhos que estão disponíveis na dissertação de mestrado do autor. O que mais elogiam é a extrema inteligência do jornalista, o seu sentido crítico e a sua posição invencível, porque apesar de todos os constrangimentos do regime de Salazar, Mário Castrim não vergou perante tantos lápis azuis e continuou a apresentar reflexões críticas sobre a televisão, esse novo meio de comunicação, ao denunciar artifícios de linguagem e manipulações. Mais tarde, após o fecho do Diário de Lisboa, Castrim integrou o semanário Tal & Qual, onde manteve o seu “Canal da Crítica”.

 

Fotografia de destaque: Logótipo da crónica de Mário Castrim. Créditos: News Museum.

Escrito por
Ana Sofia Paiva
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