É um dos artistas emblemáticos da Lisboa surrealista, embora tenha vivido metade da sua vida no Brasil. A última vez que esteve em Portugal foi em 2019, no âmbito de uma retrospetiva da sua obra na Cordoaria Nacional. Viria a falecer nesse ano, a 17 de dezembro.
Filomena Serra folheia o livro que escreveu sobre Fernando Lemos para a coleção Ph, dedicada à fotografia portuguesa contemporânea (Imprensa Nacional da Casa da Moeda), publicado uns meses antes de o artista falecer. Há o Fernando Lemos que revolucionou a linguagem fotográfica nos anos de 1940 e 1950 em Portugal e há o Fernando Lemos que abraçou o design, a pintura e a poesia quando se exilou no Brasil e por lá ficou. “São os meus heterónimos”, afirmou o artista no catálogo da exposição Fernando Lemos Designer, comissariada pelo Mude e patente na Cordoaria Nacional no verão de 2019.
O Lemos fotógrafo é o heterónimo ligado intrinsecamente a Lisboa, perpetuado neste livro que a investigadora em História da Arte da NOVA FCSH criou sem saber que seria a última homenagem. Filomena Serra era amiga do artista e encontrou-se várias vezes com ele durante as suas estadias em Portugal. “A sua ligação a Lisboa era muito forte e continuava a vir sempre que podia, apesar dos seus 90 anos”, afirma. Na última vez que veio à cidade, trouxe consigo 21 placas de azulejo pintadas em tinta acrílica que a Galeria Ratton apresentou também no verão de 2019. Outro dos seus heterónimos.
“A Lisboa de Fernando Lemos é a Lisboa surrealista, boémia, dos intelectuais, dos anos 50”, explica Filomena Serra. O livro expõe precisamente alguns atores desse cenário lisboeta. Abre com uma fotografia inédita de José-Augusto França, a quem Fernando Lemos dedicou o livro por ser “seu companheiro da aventura surrealista”, e dá palco a outros tantos nomes captados pela objetiva, como Sophia de Mello Breyner, Mário Cesariny, Alexandre O’Neill, Maria Helena Vieira da Silva ou outros dos seus companheiros surrealistas, como Marcelino Vespeira (1925-2002) e Fernando de Azevedo (1923-2002).
A liberdade e a experimentação orientam o processo criativo de Fernando Lemos. Nos vários retratos que fez, a pose clássica é subvertida num ato performativo: “encontramos flagrantes ou encenações iluminadas e recriadas com perícia, utilizando máscaras, redes, bonecos articulados, ou introduzindo brancos, desfocando a imagem, combinando negativo e positivo”, explica.
Um retrato
Fernando Lemos nasceu em Lisboa, a 3 de maio de 1926, e viveu a sua infância na freguesia de Santa Isabel. Estudou na Escola de Artes Decorativas António Arroio e na Sociedade Nacional de Belas Artes. Nos períodos de 1940 e 1950 dedicou-se à fotografia, em especial dos seus amigos intelectuais e artistas, que partilhavam com ele a resistência à ditadura. Alguns deles – entre os quais Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szénes – viriam também a exilar-se no Brasil, para fugir do regime salazarista.
Três momentos se destacaram neste período: em 1949, Lemos participou na primeira exposição do Grupo Surrealista de Lisboa, no Chiado; três anos depois, organizou uma exposição do movimento surrealista com Marcelino Vespeira e Fernando Azevedo, na Casa Jalco, também em Lisboa; ainda nesse ano, fundou com José-Augusto França a Galeria de Março, em Lisboa, onde apresentou a exposição “Fotografias de Várias Coisas”.
Já exilado no Brasil, ainda se afirmou na fotografia com exposições no Museu de Arte Moderna de São Paulo e no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, mas os seus outros heterónimos – os das artes plásticas, design gráfico e industrial – acabariam por prevalecer.
Fotografia em destaque: Fernando Lemos fotografado em 2019, por Filomena Serra, junto ao seu painel de azulejos na Galeria Ratton.