Enfermos, insalubres, incómodos. Numa época em que as ruas se queriam largas e arejadas, era assim que as elites e o poder municipal lisboeta viam os bairros antigos de Lisboa. De todos eles, Alfama foi o mais visado por críticas e planos de modernização, que só não o modificaram irremediavelmente por falta de fundos e de vontade política.
A Lisboa de meados do século XIX era uma cidade em transformação, que procurava modernizar-se como as outras capitais europeias. Parte desse processo, como denota Ana Barata, passava por intervir nos seus bairros históricos, como Alfama, Madragoa, Mouraria ou Bairro Alto. A autora de Lisboa «caes da Europa»: Realidades, desejos e ficções para a cidade (1860-1930), tese de mestrado em História da Arte da NOVA FCSH, publicada em livro (2010), refere que “à luz das teorias higienistas de Oitocentos estes bairros estavam gravemente enfermos, e o diagnóstico da doença traduzia-se na ausência do mais básico sistema de saneamento, que tornava o ar infecto e contaminado de miasmas”.
Tendo utilizado como inspiração o exemplo de Paris, cuja zona velha fora arrasada pelos projetos de urbanização do barão Haussmann, o poder municipal de Lisboa tentou levar a cabo várias iniciativas de renovação destas zonas antigas. Esse percurso tem início no relatório do vereador Júlio Pimentel. Datado de 1860, este documento denunciava a “estreiteza e mal alinhamento das ruas, pelas differenças de nivel, e pelo mau estado hygienico e architectonico” da Mouraria e de Alfama, precisando estes bairros de ser demolidos e reconstruídos “em ruas largas e bem alinhadas, praças arborisadas, e edificios em boas circunstancias”.
Existiam vários bairros problemáticos na capital, mas os planos formulados pela Câmara Municipal de Lisboa visaram particularmente Alfama, cujas ruas um relatório de 1866 definia como “preciosidades de archeologia contra o que indica a hygiene, o progresso e a civilização”. Esta é a tese que Ana Barata defende, tendo como base atas municipais em que se discutia a necessidade de alterar o bairro e plantas desenhadas para materializar essa vontade. A mais importante foi a de 1883, que antecipava um elevado número de demolições e o fim da maior parte do emaranhado de becos e vielas para dar lugar a um novo traçado de arruamentos.
Apesar dessa aspiração, a Câmara Municipal não foi capaz de levar a cabo estes planos, não só devido aos custos para expropriação, demolição e construção de novo edificado, mas também dada a dispendiosa necessidade de realojamento da densa e empobrecida população do bairro. Confrontado com o baixo orçamento e a ausência de resposta do poder central, o município acabou por se centrar noutros projetos de melhoramento da cidade, como a conclusão do Aterro da Boa-Vista (actual Avenida 24 de Julho) e a abertura de vias como o boulevard que viria a ser a Avenida da Liberdade.
A posição dos intelectuais
Mesmo perante a inatividade da administração municipal, a intervenção em bairros como Alfama, Madragoa, Mouraria ou Bairro Alto continuaria a ser defendida por várias figuras da elite cultural lisboeta que se achavam “apologistas da salubridade e do saneamento públicos”. Neste grupo encontravam-se o médico republicano Miguel Bombarda, o arquitecto Miguel Ventura Terra e o escritor Fialho de Almeida. Este último defendeu que os bairros deviam ser desfeitos por serem “redutos infames da tuberculose implacavel”.
Por outro lado, já nesta fase surgiram algumas personalidades em prol das zonas antigas. Embora pouco numerosas, estas lembraram a importância de conservar o património histórico e, de todas elas, seria Júlio de Castilho o mais destacado dos defensores. O olisipógrafo escreveu na altura que a solução para um bairro como Alfama não passava por “cortá-la de avenidas e alastrá-la de largos”, mas sim conservar o mais possível a sua arquitetura e feição arqueológica. O tempo dar-lhe-ia razão.
Em destaque: Alfama vista do Tejo (1949); fotografia de Eduardo Portugal (AFL).