Nos primeiros anos do século XX, a Avenida da Liberdade, quase sem carros, era o cenário preferido das multidões que, em ocasiões festivas, percorriam a pé os seus 1.100 metros de comprimento. Dois escritores descrevem o Carnaval desses anos em estilos inconfundivelmente opostos.
“Na terça-feira deitam até à Avenida, horas em pé a ver passar as máscaras, os carros enfeitados (alguns são lindos!), os cavaleiros à ribalta, as batalhas de confetti (…)” – assim descreve José Rodrigues Miguéis (1901-1980) a Avenida da Liberdade num dia de Carnaval dos primeiros anos do século XX, em A Escola do Paraíso (1960).
Considerado um dos romances mais representativos da sua obra, é nele que o escritor recorda a sua infância numa Lisboa do princípio do século através da personagem Gabriel. A criança testemunha o tumulto que se vive naquele dia, onde até “as criadas de servir, tresloucadas, travam combate com soldados, torcem-lhes as bisnagas, ficam encharcadas, riem-se, algumas dão bofetões”.
É num estilo mais folhetinesco que a Avenida aparece descrita em “As Criminosas do Chiado” (1925). A novela foi escrita pelo jornalista, político e historiador João Ameal (1902-1982) em coautoria com o também jornalista e dramaturgo Luís d’Oliveira Guimarães (1900-1998). Neste caso, é pelo automóvel que sobe a avenida que as personagens observam os festejos do Carnaval:
“De um lado e de outro, um formigueiro de gente desfilava, todas as categorias, todos os destinos, todas as máscaras”. Enquanto um grupo de operários – “nódoa de farrapos entre o luxo e a cidade” – marchava com orgulho, duas mulheres esguias, “tipo strangeiro, abafadas em peles escuras, desciam ligeiramente no rolar macio de uma aparição civilizada”. A estas gentes juntavam-se os “rapazes indolentes” que saíam de um animatógrafo e as crianças que escutavam o monólogo de um alcoólico: “Todo o filme diverso da cidade marulhava naquela enorme faixa da Avenida”.
Estas passagens são retiradas do livro “Lisboa, Lugares da Literatura – História e Geografia na Narrativa de Ficção do Século XIX à Actualidade” (2012, Editora Apenas), escrito por Ana Isabel Queiroz e Daniel Alves. Os investigadores da NOVA FCSH fizeram um levantamento exaustivo dos locais da cidade de Lisboa mencionados na escrita de ficção desde o século XIX, como o Rossio, a Avenida da Liberdade ou o Chiado.
A obra é um dos resultados do projeto de investigação “Atlas das Paisagens Literárias”, desenvolvido pelo IELT – Instituto de Estudos de Literatura e Tradição em colaboração com o IHC – Instituto de História Contemporânea.
Imagem: desfile de Carnaval na Avenida da Liberdade (19–). Fotografia de Paulo Guedes (Arquivo Fotográfico de Lisboa – PT/AMLSB/CMLSBAH/004/PAG/000108).