Recolher alimentos do lixo não é sinónimo de pobreza. O freeganismo é a prática que dá aos produtos uma segunda oportunidade. Em Lisboa já há praticantes que, na maioria, são estudantes e trabalhadores estrangeiros.
Combater o desperdício alimentar e dar a outra face ao capitalismo das grandes cadeias de supermercado são objetivos Do freeganismo, uma subcultura que quer reaproveitar e reciclar a comida desperdiçada, deitada nos caixotes do lixo pelas cadeias de supermercados. Em Lisboa, esta tendência já se começa a verificar, sobretudo na zona do Saldanha, da Avenida da República ou no Rossio, apesar de os espaços não serem sempre os mesmos.
A respiga, como é conhecida, remete para a apanha das espigas que ficaram por colher. “Como respigar é apanhar o que é deixado fora da colheita mas que pode ser aproveitado, assim no contexto urbano é apanhar o que é deixado fora do sistema de distribuição e ainda se pode comer” escreve Metella Senni, respigadora e autora da dissertação de mestrado em Antropologia (2019) sobre este tema
“Os respigadores são reconhecíveis, com as suas mochilas grandes ou sacos vazios na mão, aspeto de quem espera que a loja feche para poder entrar em ação”, refere a autora, acrescentando que, mesmo com a respiga, os indivíduos compram alguns produtos. O estudo aponta que é falso pensar que só as pessoas em situação de sem-abrigo é que procuram comida nos caixotes do lixo.
Metella Senni elaborou um estudo etnográfico e entrevistou dez pessoas que saíam duas vezes por semana em Lisboa, de novembro de 2018 até março de 2019. A maioria dos respigadores que a autora investigou são jovens estudantes ou trabalhadores estrangeiros, com idades entre os 20 e os 30 anos, que partilham casa.
“O que os freegans e os respigadores têm em comum é principalmente a atividade do dumpster diving e a partilha da ideia de que a comida, mesmo se encontrada no lixo, pode ser aproveitada assim quebrando um tabu cultural presente e bem radicado na realidade onde vivem” e, por isso, é comum pensar-se que a comida que está nos caixotes está imprópria para consumo. Nada mais errado.
A comida deve ser recolhida com precauções e, de preferência, aquela que esteja dentro de sacos de plástico sem estar em contacto com as paredes do caixote do lixo. Contudo, a procura por alimentos ainda é mal vista pelos trausentes e por algumas cheias de supermercados.
Metella Senni sentiu os olhares reprovadores durante a respiga em Lisboa e afirma que só com o passar do tempo é que aprendeu a ignorar. Na cidade, esta ação “funciona tão bem porque os alimentos, em alguns supermercados biológicos, são jogadas fora de uma forma que não muda a condição da comida”. Assim, não só as motivações são ecológicas – porque se combate o desperdício alimentar -, como são financeiras e de equilíbrio, dado que uma parte dos entrevistados referiu que se não respigasse, não conseguia ter uma dieta equilibrada e com os tipos de alimentos que encontra.
O “olho” de respiga e o consumo consciente regulado
Com o passar do tempo, os indivíduos adquirem o chamado “olho” de respiga, e já sabem onde devem ir e como será a recolha alimentar nessa noite. Há regras, não escritas, que os respigadores cumprem para que não exista conflitos entre os empregados dos supermercados e os restantes respigadores.
Por isso, depois da respiga, o caixote do lixo é limpo pelos indivíduos e são respeitadas as partilhas entre cada um. Porém, “nem todas as respigas são iguais. Em alguns lugares a comida chega dentro de um saco do lixo separado do resto e às vezes é até entregado direitamente nas mãos dos respigadores”, escreve Metella Senni. Acrescenta ainda que “na maioria dos casos os sacos cheios com a comida encontram-se dentro do caixote, em outras situações a comida está fora dos sacos e misturada com outros alimentos não aproveitáveis”. É aqui que entra a questão da higiene.
A autora aponta que não se deve consumir alimentos que tenham estado em contacto direto com as paredes do caixote do lixo ou, em alternativa, fazer uma boa higienização do produto e cozinhá-lo a uma temperatura ideal. Nas entrevistas, nenhum dos entrevistados afirmou ter ficado doente devido aos alimentos que recolheu da respiga.
Metella Senni conclui que, apesar da boa prática de distribuição alimentar em Lisboa, “esta pesquisa demostra que há ainda muitos alimentos potencialmente aproveitáveis a acabarem no caixote do lixo que poderiam ser canalizados em circuitos de partilha estruturados e bem organizados partindo de uma rede já existente de pessoas interessadas em participar”.
Fotografia: Respiga, fotografia retirada da dissertação de mestrado de Metella Senni.