É pequena em extensão – percorre-se em poucos minutos – mas gigante na diversidade. Neste roteiro, procuramos os notáveis de outros tempos. Uns permanecem. Outros são histórias em ruínas.
A Rua das Portas de Santo Antão pode suscitar à primeira vista sentimentos contraditórios. Parece situar-se entre a opulência e a decadência. Ruínas de edifícios convivem com traços modernos de outros convertidos em hotéis e lojas gourmet. Da célebre cervejaria Solmar restam apenas os exteriores, marcados no passado pelo neón modernista. Empregados mantêm-se às portas dos restaurantes de cardápio em riste. Neste pequeno universo lisboeta, onde convivem todos os estratos sociais, gerações e etnias, mantêm-se notáveis que exigem uma visita.
Chamada “Corredoura” em meados do século XIV, a rua começa no Largo de São Domingos, junto ao Teatro D. Maria II, e acaba no Largo da Anunciada. É paralela à Avenida da Liberdade. A expansão foi-se fazendo de sul para norte, em particular na viragem para o século XX quando lá se instalaram referências culturais e científicas. Pertencia à extinta freguesia de Santa Justa, a mais populosa de Lisboa em finais do século XVII.
Partimos da tese de mestrado em História Contemporânea de Manuel Villaverde, intitulada “A Evolução de Lisboa e a Rua das Portas de Santo Antão (1879-1926)”, defendida em 1997 na NOVA FCSH e resumida neste artigo (2006), e de contributos de outros investigadores para lhe mostrar este universo lisboeta que permanece numa rua. Clique nos links ao longo do texto para descobrir outros segredos relacionados com estas paragens.
Largo de São Domingos ou a Praça da Tolerância
Comece esta visita no Largo de São Domingos, junto à Praça do Rossio e ladeado pelo Teatro D. Maria II, o Palácio da Independência, a Igreja de São Domingos e a célebre taberna “A Ginjinha”. No centro do largo, encontra o memorial às vítimas do massacre judaico de 1506. No dia 19 de abril desse ano, 10 anos depois do édito de expulsão de judeus e mouros por D. Manuel I, uma multidão matou centenas de judeus acusados de serem a causa dos males de Lisboa: seca, fome e peste. O memorial foi inaugurado a 19 de abril de 2008. Em frente, de costas para a “A Ginjinha”, encontra um mural com a inscrição “Lisboa, cidade da tolerância” em 34 idiomas.
Teatro Nacional D. Maria II
Além de ser o caminho principal entre o centro e a periferia, a Rua das Portas de Santo Antão tinha início na zona onde se situavam as duas mais significativas instituições do reino: a Inquisição, até 1820, e a corte, até 1755. O Tribunal da Santa Inquisição instalou-se em 1571 no Palácio dos Estaus (ou Paço dos Estaus), erguido em 1449 por D. Pedro para albergar monarcas e embaixadores estrangeiros, inserido num dos marcos de expansão da Lisboa medieval. O palácio ficou bastante arruinado no terramoto de 1755 e ardeu totalmente em 1836, quando o Tesouro Público funcionava nas suas instalações. No mesmo local, foi construído o Teatro D. Maria II, inaugurado em 1846, marco da Praça do Rossio. O D. Maria e o Rossio foram protagonistas da literatura dos séculos XIX e XX.
Palácio da Independência
Do lado direito do início da Rua das Portas de Santo Antão, encontra um edifício rosa escuro, fundado em 1467. Também conhecido por Palácio Almada, por ter pertencido à influente família Almada, é ao mesmo tempo um dos exemplos mais representativos da arquitetura seiscentista e de um estilo árabe, patente no pátio interior e jardim. Subsistiram às intervenções manuelinas e maneiristas quatro portais e duas chaminés de cones facetados. No interior encontram-se dois painéis azulejares dos séculos XVII e XVIII, assinados por Gabriel del Barco, um dos mais relevantes artistas barrocos em Portugal, conhecido pelo uso de diferentes tonalidades de azul em camadas. Foi quem assinou a Grande Panorama de Lisboa, um emblemático painel de Lisboa antes do terramoto, patente no Museu do Azulejo.
Este palácio está classificado como Monumento Nacional dado o seu valor artístico e histórico. Foi palco de reuniões que conduziram à Restauração da Independência em Portugal (daí o seu nome) e Almeida Garrett habitou-o em 1834. Foi doado ao Estado em 1940.
Das Ginjinhas ao Gambrinus
Ande alguns metros pela rua adentro. Vai passar por duas tabernas de ginjinha, icónicas e ambas do seu lado esquerdo: a Ginjinha sem Rival, no n.º 7, foi fundada entre 1890 e 1892 e serve, além da bebida emblemática de Lisboa, o licor “eduardino”, em homenagem a um palhaço do Coliseu; a Ginjinha Popular, no n.º 61, também fundada no século XIX, serve, desde 1971, o licor que, curiosamente, compra à Ginjinha sem Rival. Entre uma e outra está a discreta porta do luxuoso restaurante Gambrinus, no n.º 23, que comemorou 80 anos em 2016. Se entrar, repare na decoração eclética, que mistura arte portuguesa com madeiras exóticas e porcelanas da Companhia das Índias. O Gambrinus foi o local de ceia escolhido por Alexandre O’Neill na prosa “Para o retrato-robot de um escritor”, incluída numa proposta de edição crítica da obra – grande parte dela dispersa e inacessível – do escritor.
Fundação do clube desportivo Benfica (anterior Bristol Club)
Ao chegar à primeira esquina com a Rua do Jardim do Regedor, no n.º 9, depara-se com o edifício da Fundação Benfica. Entre 1918 e 1928, acolheu um dos clubes noturnos ou “clubes da guerra” mais emblemáticos de Lisboa: o Bristol Club. Ficou conhecido pela sua arquitetura moderna – portas de entrada giratórias, corrimãos em tubos metálicos e cinzeiros de parede – e pelas obras de arte decorativas que acolheu, pertencentes a Almada Negreiros, Eduardo Viana e Leopoldo de Almeida.
“A” Porta de Santo Antão
Nessa esquina entre a Rua das Portas de Santo Antão, a Rua do Jardim do Regedor e o Beco de São Luís da Pena uns metros à frente, encontra-se a Igreja de São Luís dos Franceses, do seu lado direito. Localizava-se aqui “a” Porta de Santo Antão, uma antiga porta da cidade, inserida na cerca fernandina, pela qual se fazia o trânsito até à Praça do Rossio. A porta tinha de um lado a imagem da Nossa Senhora da Conceição e do outro a imagem de Santo Antão. Foi totalmente destruída no terramoto de 1755.
Igreja de São Luís dos Franceses
Suba a rua à esquerda em direção à igreja de tons rosa escuro. Foi fundada em 1552 para servir a comunidade francesa que residia em Lisboa e conseguiu sobreviver, embora sofrendo grandes danos, ao terramoto de 1755. Entre e aprecie os três altares marmóreos executados pelo escultor genovês Pasquale Bocciardo no século XVIII e o órgão da autoria do francês Aristide Cavaillé-Coll, instalado na igreja em 1882. No piso superior da igreja funcionava o Hospital de São Luís (Hospital St. Louis), pertença da Confraria do Bem-aventurado São Luís, que prestava auxílio aos franceses pobres e necessitados. O hospital está localizado hoje no Bairro Alto, na Rua Luz Soriano, 182.
Casa do Alentejo (anterior Majestic Club)
No nº 58 da Rua das Portas de Santo Antão encontra a Casa do Alentejo. Não se deixe iludir pela fachada. Este palácio seiscentista, pertencente aos viscondes de Alverca e remodelado no século XX pelo arquiteto Silva Júnior, tem três pátios interiores, cada um mais rico do que o outro em elementos neo-árabes, barrocos, neo-góticos, neo-rococós e artenovianos. Os paineis de azulejo também merecem ser apreciados. Antes de ser arrendado ao Grémio Alentejano em 1932, aqui funcionou, entre 1917 e 1928, o Majestic Club, um clube noturno de luxo destinado aos estrangeiros abastados, conhecido pelo salão de baile revestido de espelhos e por imponentes salas de jogo.
Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa (anterior Palace Club)
Do lado oposto, no n.º 89, do lado esquerdo, o edifício projetado pelo arquiteto Álvaro Machado acolheu entre 1917 e 1920 mais um emblemático “clube da guerra”: o Palace Club, situado no primeiro andar e conhecido pelo seu salão de festas e de jogos. É ocupado desde 1922 pela Associação Comercial de Lisboa (fundida com a Câmara de Comércio de Indústria Portuguesa).
Coliseu dos Recreios
Outro notável da Rua das Portas de Santo Antão está apenas uns passos à sua frente, do lado direito, no n.º 96. O Coliseu dos Recreios – hoje mais conhecido por Coliseu de Lisboa – foi inaugurado em 1890 com pompa e circunstância, dada a magnitude do edifício: a própria montagem ao vivo da cúpula em ferro, com 25 metros de raio, vinda da Alemanha e feita pela firma Hein Lehman, atraiu centenas de pessoas e jornalistas.
Sociedade de Geografia de Lisboa e Museu
No mesmo edifício que dá acesso ao Coliseu, encontra no n.º 100 a sede da Sociedade de Geografia de Lisboa, criada em 1875. A sua localização lado a lado com os espetáculos populares do Coliseu gerou, na altura, alguma perplexidade na opinião pública. Aproveite para visitar as coleções do seu museu etnográfico, em particular a que corresponde ao período entre 1875 e 1900, que traduz a presença portuguesa em África, Timor e Macau, e os conjuntos artefactuais de grupos etnoculturais como os Chokwé (Moçambique), Luba e Kongo (República Democrática do Congo), Tsonga (África do Sul) ou Bijagó (arquipélago de Bijagós).
Teatro Politeama
Quase em frente ao Coliseu, continua o desfile de notáveis culturais: o Teatro Politeama, no n.º 109, foi inaugurado em 1913, num edifício de inspiração francesa, projetado por Ventura Terra. O seu grande janelão de ferro, ao estilo dos teatros de boulevard, e as inscrições “Música” e “Rir” (esta substituída mais tarde por “Comédia”) refletiam a polivalência do espaço: um teatro de variedades destinado ao grande público lisboeta.
Ateneu Comercial de Lisboa
A partir do Coliseu para norte, a opulência dá lugar à nostalgia: da cervejaria Solmar, um ex-libris do século XX, restam apenas os exteriores dos n.ºs 106 e 108. Logo a seguir, no n.º 110, uma porta com um baixo relevo e a palavra “Atheneu” denuncia um notável de outrora: o Ateneu Comercial de Lisboa, fundado em 1880 e instalado em 1895 no Palácio dos Condes de Povolide. Marco na agenda da cultura e da educação do século XX, luta hoje pela sobrevivência.
Túnel do Pátio do Tronco
Siga em direção ao norte. Embora a rua esteja agora ladeada de edifícios em ruína, há ainda lugares com história. Do seu lado esquerdo, encontra um túnel que liga a Rua das Portas de Santo Antão ao Pátio do Tronco, onde existiu no século XVI a Cadeia Municipal do Tronco. Em 1552, o poeta Luís Vaz de Camões envolveu-se numa rixa nesse túnel e foi preso nessa cadeia. Em 1992, a Câmara Municipal de Lisboa colocou um painel de azulejos da autoria de Leonel Moura para assinalar a efeméride.
Largo da Anunciada
Ao chegar ao Largo da Anunciada, com o elevador do Lavra de um lado e a vista para a Avenida da Liberdade e o edifício do Hard Rock Café – outrora cinema Condes, uma catedral do cinema do século XX – do outro, chegou ao fim da Rua das Portas de Santo Antão. Também aqui se cruzam tempos e vivências: o Elevador da Lavra, inaugurado em 1884, é o funicular mais antigo de Lisboa. A Leitaria da Anunciada, famosa pelos seus painéis de azulejos na fachada, foi em tempos a Vacaria Andrade: as vacas saíam à rua acompanhadas pelos leiteiros e eram ordenhadas à porta das igrejas e casas. Os restaurantes Solar dos Presuntos e Champanheria do Largo contrastam cozinha tradicional com estilo gourmet.
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