Um longo capítulo da história do jornalismo português escreveu-se no Bairro Alto. Jornais sedeados em antigos palácios conviveram quase um século com “folhas” partidárias, instaladas em vãos de escada com escadarias decrépitas.
Em 1974, quando a revolução acabou com a censura, o número de jornalistas não ultrapassava os 400. A maioria cruzava-se diariamente nas ruas estreitas do Bairro Alto, também partilhadas pelos censores. Foi o centro da vida jornalística da capital até ao início da década de 90 do século XX. Com o fecho do Diário de Lisboa, em 1990, e do Diário Popular, um ano depois, jornais que eram vizinhos de porta da frente na Rua Luz Soriano, perdeu a ligação à história do jornalismo, embora continue boémio, criativo e vibrante.
Uma investigação de Carla Baptista, da NOVA FCSH, e de Fernando Correia, da Universidade Lusófona, conta como o jornalismo se modernizou a partir da década de 60 do século XX, mantendo os seus locais de trabalho e boémia mas alterando tudo o resto: graus de politização, empenhamento cívico, formas de escrita e olhares sobre o mundo.
Após o terramoto de 1755, a nobreza debandou e deixou os palácios ao abandono. Desde finais do século XVIII e ao longo do século XX, as antigas cocheiras e cavalariças foram ocupadas pela “casa das máquinas” dos jornais impressos em caracteres de chumbo. Era o caso de O Século, fundado em 1881, localizado no imponente palácio dos viscondes de Lançada, um império jornalístico e editorial tão gigantesco que mudou o nome da Rua Formosa para Rua de O Século.
O desportivo Record também tinha a sede na Rua Luz Soriano, num palácio que foi posteriormente residência do político Carlos Relvas, proclamador oficial da República na varanda dos Paços do Conselho, no dia 5 de outubro de 1910.
Para honrar a memória e resistir à gentrificação, A Bola, fundada em 1945, persiste orgulhosamente na sua sede original, o antigo palácio da família Rebelo Palhares, na Travessa da Queimada, nº 47.
Uma tal concentração de jornais criou um ambiente original. Jornalistas de títulos concorrentes, às vezes ferozes opositores em tempos de grande fragmentação e hostilidade entre as várias cisões republicanas e monárquicas, encontravam-se todos os dias nos restaurantes (1º de Maio, Alfaia, Rina, Farta Brutos eram poisos populares entre a classe até à década de 80) e cruzavam-se nas ruas com os odiosos censores, cuja direção geral se situava na Rua São Pedro de Alcântara.
A proximidade dava jeito, quando a rotina obrigava os chefes de redação a enviarem as provas de página em mão, entregues e devolvidas por estafetas, para serem carimbadas com o célebre “Visado pela Censura”.
Quando Salazar caiu da cadeira e foi substituído por Marcelo Caetano, em 1968, o novo chefe de governo impôs uma mudança de carimbos: o antigo “Cortado” passou a “Proibido”, o “Autorizado com Cortes” ficou “Autorizado Parcialmente” e o “Suspenso” mudou para “Demorado”. Nada disto melhorou a vida dos jornalistas, constrangidos no exercício da sua profissão, privados de liberdade e mergulhados numa rotina opressiva, feita de cortes, escassez de recursos e de formação.
Esta paisagem deprimida começou a animar-se na década de 1960, fruto de transformações internas e externas ao campo jornalístico. Progressos na educação, alargamento do acesso ao ensino superior e um surto de crescimento económico contribuíram para trazer mais jovens licenciados para o jornalismo, criar novos projetos editoriais e introduzir melhorias técnicas que reforçaram a centralidade dos jornais na vida da cidade e do país.
É esta história que conta o livro de Carla Baptista e Fernando Correia (2007) Jornalistas, do Ofício à Profissão, Mudanças no Jornalismo Português (1956-1968). Editorial Caminho: Lisboa.
Legenda da imagem: grupo de ardinas, na Rua Formosa, junto à redação do jornal O Século (1911). Créditos. Arquivo Fotográfico de Lisboa.