Baleia no rio, terramoto na cidade

O que têm em comum o rio Tejo, uma baleia e um terramoto? Esta é uma de várias histórias que revelam a face marinha de Lisboa, contadas por Cristina Brito, investigadora do Centro de Humanidades (CHAM) da NOVA FCSH.

Lily era uma baleia-comum. Naquele ano decidiu migrar pela rota da costa em vez de seguir nos corredores submarinos profundos em direção a norte. Por causa dessa escolha, ficou sozinha, cansada e esfomeada. Enquanto os golfinhos continuaram a migração em grupos pequenos, Lily decidiu descansar junto às margens do rio Tejo. Corria o ano de 1531, e naquele 18 de janeiro, Lily não sabia que dias antes, a 2 e a 7 daquele mês, já tinham ocorrido dois abalos sísmicos fortes.

Dias depois, a 26 de janeiro de 1531, um acontecimento iria ficar gravado na memória, não só desta história, como na História de Lisboa. As águas calmas do Tejo começaram a ter um comportamento que não era próprio e Lily sabia-o, mas era tarde demais. As águas recuaram e um enorme abalo sísmico lançou Lily para os bancos de areia da margem. Quando o rio começou a voltar ao seu estado natural, a fúria das águas lançaram-na novamente, desta vez para mais longe. O rio Tejo foi a última morada de Lily.

Este é o resumo do conto escrito por Cristina Brito, investigadora do Centro de Humanidades (CHAM) da NOVA FCSH, no artigo (2019) que cruza a história ambiental do rio Tejo com o terramoto de 1531, que também pode ser visualizado. Inspirada no livro de Patrick O’Brian, Beasts Royal, a investigadora considera que esta abordagem “é diferente das metodologias históricas, arqueológicas e patrimoniais típicas” porque se usa “a escrita criativa para esse propósito”.

Apesar de ser uma história, é baseada em eventos reais e existem registos de se ter avistado, dias antes do segundo maior terramoto de Lisboa, uma baleia no rio Tejo. Sinónimo de punição e de mau presságio, os lisboetas sabiam que uma catástrofe estava iminente e este registo ficou documentado num boletim à época, impresso por Heinrich Stainer na cidade de Augsburg, na Alemanha.

Entre a realidade e a ficção

A narrativa da investigadora, contada sob a perspetiva da baleia Lily, tem traços históricos verídicos. Nos dias 2 e 7 de janeiro de 1531, Lisboa sentiu abalos sísmicos em que “observações indicam que o distúrbio da água foi precedido pelo choque e inundação das margens do rio”, aponta Cristina Brito. O terramoto de 1531 faz parte do leque dos três sismos mais devastadores do século XVI: destruiu cerca de mil e 500 edifícios, várias igrejas e muitos lisboetas pereceram.

Relatos anteriores ao século XVI, no reinado de D. João I, assinalam que cetáceos e alguns mamíferos marinhos foram então avistados nas margens do rio. Alguns deles, encalhados nos bancos de areia, serviram de alimento para a população lisboeta.

O registo e documentação destas aparições começaram a ser importantes, principalmente nos jornais do século XVIII: “É o caso de uma baleia-comum encalhada no estuário do Tejo, relatada na Gazeta de Lisboa, com uma descrição detalhada do exemplar, acompanhada de uma ilustração da baleia com as suas medidas”, aponta a investigadora.

Também na literatura se percebe a importância dada à fauna marinha. Em “Sermão de Santo António aos peixes”, o seu autor, Padre António Vieira, utiliza a observação dos golfinhos do estuário do Tejo para ilustrar a metáfora de os grandes animais comerem os mais pequenos.

Até à década de 1940 era frequente a observação de golfinhos a nadar nas águas do rio Tejo. Porém, devido à poluição e à pesca, 20 anos depois, começaram a ser esporádicas as observações destes animais marinhos. Em relação à observação das baleias, a investigadora é convicta de que a sua presença “deve ter sido tão significativa que numerosos mitos, ideias e relatos surgiram de raros avistamentos”.

Fotografia: Primeira página do boletim alemão que mostra a baleia encalhada em Lisboa em 1531 (Retirado do artigo da investigadora).

Escrito por
Ana Sofia Paiva
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