Da cólera à COVID-19 em Lisboa: as causas são também geográficas

Antes da atual pandemia, Lisboa foi assolada por diversos surtos de doenças, que até levaram à  construção de dois cemitérios na cidade. Gonçalo Antunes, investigador da NOVA FCSH, revela algumas das consequências destas epidemias para a capital.

Desde que há memória da existência de cidades que as epidemias têm uma relação com o espaço urbano. Esta ligação tem persistido ao longo dos anos e as causas são também geográficas, explica Gonçalo Antunes, investigador do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA) da NOVA FCSH, no artigo (2021) sobre as epidemias, as cidades e a habitação.

São nos meios com maior densidade populacional e aglomerados habitacionais que as epidemias se disseminaram com maior rapidez, porque “desde sempre, as viagens transcontinentais de índole comercial foram focos de disseminação e de contaminação, sendo que, com a Globalização e a redução do espaço-tempo, a rapidez das ocorrências epidémicas e as potencialidades de propagação global são mais fortes do que nunca”.

Mas antes, Lisboa já tinha atravessado uma floresta de surtos, desde logo, com as consequências das pestes que assolaram a cidade. Contudo, no século XIX, o crescimento industrial originou um grande êxodo rural com os recém-chegados a fixar-se sobretudo em bairros como Alfama, Castelo, Mouraria, Madragoa e em vilas operárias. Em pouco menos de um século, Lisboa lidou com diversos surtos epidémicos como a febre tifoide, a tuberculose, a febre-amarela, a disenteria, entre outras. Mas aquele que levou à construção dos maiores cemitérios da cidade, o Cemitério dos Prazeres e o Cemitério do Alto de São João, foi o surto de cólera morbus, em 1833, que, aliás, continuou a reaparecer no século XX.

Este elevado crescimento populacional ajudou à propagação de epidemias devido à falta de condições higiénicas nas casas e no espaço público, às deficitárias condições sanitárias, à falta de água potável nas habitações e ainda à “pobreza urbana, que se traduzia em dietas alimentares impróprias e corpos imunodeprimidos”, afirma o autor.

É por esta razão que o investigador se refere a uma “geografia da morte” porque “os vários surtos epidémicos apresentavam diferentes ocorrências territoriais, mas atingiam com particular incidência toda a colina do Castelo e também as áreas habito-industriais periféricas, em particular os pátios e vilas operárias”. Por outras palavras, a população mais desfavorecida vivia paredes meias com os surtos epidémicos.

Para tentar combater estas epidemias, apresentaram-se projetos-lei para melhorar as condições habitacionais dos trabalhadores, um processo que se revelou lento. Pouco tempo depois, no final da década de 1910, Lisboa foi assolada pela Gripe Espanhola, que ditou a morte a milhares de lisboetas no espaço de dois a três anos. Gonçalo Antunes afirma, também, que embora com menos incidência, várias destas doenças persistiram durante o século XX, e na década de 1970 ainda se falava de cólera em vários bairros de habitações precárias na cidade de Lisboa.

No novo século, o mundo assistiu ao aparecimento de um novo coronavírus que, mais uma vez, corrobora a tese de que os espaços urbanos são focos privilegiados para a disseminação de doenças contagiosas. Segundo um relatório das Nações Unidas, de Julho de 2020, cerca de 90% das infecções de COVID-19 foram registadas em espaços urbanos. Por sua vez, a habitação também reflete a desigualdade de exposição ao vírus: “Esta pandemia potenciou a demonstração das desigualdades económicas e sociais, desde logo pelas divergentes experiências de confinamento a que todos estiveram obrigados pelo mundo”, explica o investigador.

 

Fotografia: Bairro de Lata em Lisboa (190?). Joshua Benoliel, Arquivo Fotográfico de Lisboa.

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Ana Sofia Paiva
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