O “estranho” caso de Benvinda memorizado na fotografia clínica

Benvinda foi um dos casos mais icónicos estudados por Miguel Bombarda, diretor do então Hospital de Rilhafoles, em Lisboa, entre o final do século XIX e no início do século XX. A mulher tinha microcefalia e foi estudada em vida e depois da morte.

Benvinda foi apelidada de “monstro” ou de “macaca”. A razão? A mulher que veio de Abrantes para Lisboa tinha microcefalia, uma malformação na qual a cabeça é mais pequena do que o normal. Esta condição neurológica, sabe-se hoje, deve-se a um problema no desenvolvimento cerebral durante a gestação ou tem origem numa doença da mãe.

No dia 5 de setembro de 1855, Benvinda é internada no Hospital de Rilhafoles, em Lisboa, para mais tarde ser estudada pelo próprio psiquiatra que hoje dá o nome ao hospital. O uso da fotografia para o estudo, no século XIX, foi importante para a iconografia científica que refletia “o imaginário social que se projeta sobre a deformidade monstruosa”, refere António Fernando Cascais, investigador no Instituto de Comunicação (ICNOVA) da NOVA FCSH, num artigo publicado em 2017.

Benvinda era pacífica, simples e não escondia as maldades que fazia no Hospital. Mas se alguém a contrariasse e lhe dissesse que estava suja, a mulher tornava-se agressiva, gritava e batia em tudo o que encontrava. Em certas alturas tinha ataques epiléticos, comia depressa e sem talheres. Os seus olhos quase nunca tinham expressão e não conseguia aprender nada. Exceto um ato elementar: quando lhe mandavam, ela abraçava as pessoas e quase sempre as beijava.

Não era muito vaidosa, mas gostava de se arranjar e passava a maior parte do dia sentada no chão, com os braços agarrados aos joelhos, a balançar e a expirar bruscamente para não se assoar. Quando andava, não se conseguia endireitar. Estes são aspetos que Miguel Bombarda (1851-1910) descreve minuciosamente no livro Contribuições para o estudo dos microcéfalos, em 1894.

Depois de Benvinda falecer em 1889, o seu corpo serviu de objeto de estudo para médicos como José Curry da Câmara Cabral (1844-1920), que a autopsiou, José António Serrano (1951-1904), que estudou os órgãos, Alfredo da Costa (1859-1910), que examinou o esqueleto, Sabino Coelho (1853-1938), que ficou encarregue da miologia e dos genitais, e Miguel Bombarda que estudou o crânio e o cérebro. Apenas este último apresentou os seus resultados e constatou que o cérebro era mais pequeno que o normal.

“Quanto às peças esqueléticas de Benvinda, terão sido passadas por Serrano a Francisco Ferraz de Macedo, que as incluiu na sua coleção privada, posteriormente doada ao Museu Antropológico da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, então Secção do Museu Bocage da Escola Politécnica”, aponta o investigador.

O estudo de Benvinda chamou a atenção de Francisco de Oliveira Feijão (1850-1918), médico obstetra e cirurgião, que apresentou a sua história em 1880 no Congresso Internacional de Antropologia e Arqueologia Pré-históricas, em Lisboa. A exposição do seu caso e da única fotografia que se conhece da paciente causou fortes opiniões.

A fotografia científica portuguesa foi impulsionada por José Júlio Bettencourt Rodrigues, na “Secção Photografica”, pertencente à Secção de Trabalhos Geológicos dependente desde 1869 da Direção Geral dos Trabalhos Geodésicos, Topográficos e Hidrográficos e Geológicos do Reino, tutelada pelo Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria.

Apesar de a maioria deste espólio ter desaparecido no incêndio da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, em 1978, estas coleções foram depositadas no Museu Geológico de Lisboa. “Com inteira probabilidade, a fotografia terá aí sido executada, visto que, para além dos trabalhos cartográficos em que a secção se tinha especializado, prestava também serviços de fotografia, fotolitografia e heliogravura a outras instituições e particulares, entre os quais a Escola Médico-cirúrgica de Lisboa”, indica o investigador.

Primeiramente, Miguel Bombarda concordava com a visão que esta anomalia era uma regressão evolutiva do humano, ao nível de animais como o chimpanzé. Mais tarde, com o progresso, “a ideia de que a microcefalia é a expressão de uma regressão atávica é por isso insustentável e a ideia popular do homem-macaco fêz o seu tempo”, indica o investigador.

O médico estudou outros pacientes com diferentes graus de microcefalia e idades, casos que estão documentados no vasto espólio com quatro mil e 800 peças fotográficas do atual Hospital Miguel Bombarda.

Fotografia: Desenho sobre Fotografia de Benvinda. Reproduzido em Francisco Augusto de Oliveira Feijão. Retirado do artigo do investigador.

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Ana Sofia Paiva
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