“Queres fiado… Toma!” é a expressão mais conhecida de Zé Povinho, a caricatura de Rafael Bordalo Pinheiro. Ganhou vida a 12 de junho de 1875 e serviu para satirizar o povo e o poder. O seu nome não foi escolhido ao acaso e as situações também não: até de uma alusão à A Última Ceia Zé Povinho fez parte.
Camponês modesto, pobre nas suas vestes, grosseiro na atitude. De compreensão lenta, analfabeto e enganado por todos, tem, à mesma, o sorriso a afigurar-se-lhe na cara. Este é o retrato de Zé Povinho, figura incontornável do século XIX que nasceu do lápis de Rafael Bordalo Pinheiro. O artista, membro do conhecido Grupo do Leão, deu vida ao Zé Povinho, pela primeira vez, nas folhas do seu jornal humorístico A Lanterna Mágica, a 12 de junho de 1875.
Naquele dia, a “revista ilustrada dos acontecimentos da semana” apresentava a figura do Zé Povinho a ser abordado para o peditório de Santo António, uma sátira ao abuso sobre o povo. As múltiplas características desta figura são descritas por Raquel Henriques da Silva, investigadora do Instituto de História da Arte da NOVA FCSH, no artigo (2007) sobre a ambivalência desta personagem.
“O que particulariza o Zé Povinho de Bordalo é a sua absoluta atualidade: ele é o cidadão do país liberal, onde há eleições, impostos, opinião pública e liberdade de imprensa”, afirma a investigadora. Mas o seu nome é, em si próprio, um conjunto de símbolos muito mais complexo do que o nome de um mero camponês analfabeto.
Zé Povinho remete para Zé Ninguém. O primeiro nome personifica todos os portugueses. Já o apelido tem outro significado: “Povo é a Nação, na cartilha constitucionalista do regime, é no diminuitivo inho, com que a língua portuguesa exprime o afecto e o desdém, que a figura se define e se torna Ninguém, sendo toda a gente”. Para a investigadora, foi este significado que determinou a “chave do sucesso” da personagem.
Rafael Bordalo Pinheiro idealizou esta figura de maneira ambígua: por um lado, representa o povo que é abusado pelo poder instituído; por outro, mostra que o mesmo não é capaz de se impor às normas, que não se rebela. É esta dupla condição que também denota a posição do próprio artista, umas vezes em que faz parte do povo vítima do abuso de poder, outras distanciando-se da inanimada sociedade portuguesa.
Raquel Henriques da Silva relaciona o modo de estar de Zé Povinho, em certa medida, com o de Sancho Pança e de Alberto Caeiro. Eles “não acreditam nem na História, nem nos livros nem nos homens” apenas tentavam “existir como as pedras e as águas e rir como as crianças”. Mas também é possível associar o Zé Povinho à figura do bobo da corte de Gil Vicente, porque também ele observava o que acontecia, mas fingia que nada se passava.
Até à morte de Rafael Bordalo Pinheiro, o Zé Povinho não deixou de existir, principalmente como adereço nas tabernas e lojas ou cristalizado nas conhecidas cerâmicas das Caldas da Rainha.
As paródias do Zé Povinho
O Dia d’ hoje – A Ceia do Zé
Nesta caricatura, Zé Povinho surge no centro do quadro, na figura de Jesus Cristo. Ao seu redor estão as figuras do regime que supostamente o apoiam mas que, à mais pequena oportunidade, o traem. As personagens estão quase todas identificadas por José-Augusto França, refere a investigadora. São elas: “o rei D. Luís, o argentário Conde de Burnay, e Fontes Pereira de Melo, no lugar de Judas”.
A publicação desta caricatura teve repercussões judiciais, mas o pintor tinha por hábito lidar com a justiça de uma forma muito característica.
Zé Povinho na História
Nesta imagem, Rafael Bordalo Pinheiro afirma que o povo português andou a dormir durante os principais acontecimentos do século XIX. Com isto, Bordalo utiliza a metáfora do sono para demonstrar a desistência do povo: “Era essa a história do Zé Povinho, aproveitando a soneca que a paz do regime lhe proporcionava: está mais próspero e ataviado, distraído da magreza da árvore da liberdade”, refere Raquel Henriques da Silva.
É através desta premissa que Bordalo Pinheiro critica o povo, encostado e logo à partida derrotado, sem se emancipar contra o poder, o que “impediu a grandeza da História recente”.
Fotografia: Maria Paciência e Zé Povinho, personagens de Rafael Bordalo Pinheiro. Arquivo Municipal de Lisboa.