Nos anos de 1970 e 1980, passaram pelo no n.º 79 do Largo da Graça, no rés-do-chão da Vila Sousa, algumas das personalidades mais relevantes das artes e letras portuguesas. Mas a maior delas seria talvez a anfitriã.
Mulher de múltiplas facetas, Natália Correia (1923-1993) conseguiu a proeza de juntar nomes como António Sérgio, José-Augusto França e Mário Cesariny no Botequim da Liberdade, bar que fundou em 1971, com Isabel Meireles, Júlia Marenha e Helena Roseta, junto à Vila Sousa, no Bairro da Graça.
Foi poeta (não queria ser chamada de “poetisa”, porque considerava a poesia assexuada), romancista e dramaturga; passou como jornalista pelo Rádio Clube Português, dirigiu a Vida Mundial, precursora das newsmagazines, fez televisão e coordenou a editora Arcádia. Foi condenada a três anos de pena suspensa pela Antologia da Poesia Erótica e Satírica, publicada em 1966.
Espaço de tertúlias políticas, convívios literários e café-concertos, o Botequim acabou por ser uma extensão da sua atividade política. Natália Correia foi eleita para o Parlamento em 1980, como deputada pelo PPD/PSD, numa altura em que a despenalização do aborto protagonizava os movimentos femininistas na Península Ibérica. A discussão do tema na Assembleia da República foi marcada pela solidariedade feminina transpartidária, descreve Carla Martins na sua tese de doutoramento em Ciências da Comunicação da NOVA FCSH, publicada em livro (Aletheia, 2015). Deputadas de várias fações políticas como Odete Santos e Zita Seabra (PCP), Teresa Ambrósio (PS), Helena Roseta e Natália Correia (PSD) uniram-se na defesa deste direito, mas as mulheres representavam apenas 9% de todos os parlamentares.
No célebre debate parlamentar de 12 de novembro de 1982, no qual se discutiu a proposta de despenalização do aborto apresentada por Zita Seabra, Natália Correia faz uma intervenção histórica. Depois de o deputado centrista João Morgado afirmar que “a igreja Católica proíbe o aborto porque entende que o ato sexual é para se ver o nascimento de um filho”, a escritora responde-lhe em verso: “Já que o coito diz Morgado tem como fim cristalino, preciso e imaculado fazer menino ou menina e cada vez que o varão sexual petisco manduca, temos na procriação prova de que houve ‘truca-truca’, sendo só pai de um rebento, lógica é a conclusão de que o viril instrumento só usou parca ração! Uma vez. E se a função faz o órgão diz o ditado consumado essa exceção, ficou capado o Morgado”.
O seu nome ficou inscrito na toponímia lisboeta quatro meses após a sua morte, por sugestão da Junta de Freguesia da Graça e a Associação de Mulheres Socialistas. A Rua Natália Correia começa perto da Rua dos Sapadores e termina na Rua da Graça. O botequim, que fechou após a morte da escritora, ganhou também nova vida em 2010 com donos que decidiram manter o espírito que o definira há 30 anos.