Com o imenso Tejo em fundo, a área mais oriental de Lisboa começa a ganhar contornos criativos e cosmopolitas. As fábricas abandonadas transformam-se em lojas, espaços colaborativos e restaurantes. Mas a traça dos edifícios e as vilas operárias não deixam esquecer o passado.
Lisboa oriental foi sinónimo de indústria. Aqui se localizava uma boa parte das fábricas e dos grandes armazéns da cidade na viragem para o século XX. O pulsar dessa economia levou a que muitos operários e suas famílias se instalassem nesta área que entrou em declínio na segunda metade desse século. A Exposição Mundial dos Oceanos, a Expo 98, tornou a colocar no mapa a zona ribeirinha oriental, mas muito ficou por fazer. Embarque neste roteiro guiado por Nuno Pires Soares, professor e geógrafo da NOVA FCSH, e conheça mais sobre esta Lisboa clicando nos links ao longo do texto.
Ponto de partida: Museu Nacional do Azulejo (Rua Madre de Deus, freguesia de Penha de França)
- Museu Nacional do Azulejo (MNAz)
O ponto de partida deste roteiro começa no antigo Mosteiro da Nossa Senhora da Madre de Deus, que alberga hoje o Museu Nacional do Azulejo. O edifício foi fundado em 1509 pela Rainha D. Leonor (1458-1525) que, após a morte de D. João II, se mudou para este mosteiro. Durante esse tempo e já depois do seu falecimento, o mosteiro recebeu muitas peças valiosas que enriqueceram o seu espólio, como está documentado na tese de mestrado (2016) de Rita Pais, da NOVA FCSH.
No Museu Nacional do Azulejo encontra-se o painel de 23 metros conhecido por “Grande Panorama de Lisboa”, datado de 1700. É um dos mais importantes registos iconográficos da cidade antes do terramoto de 1755. Esta obra esteve durante décadas encaixotada na Academia de Belas Artes, como conta Hugo Xavier, investigador da NOVA FCSH.
A caminhar para Este, em direção ao Beco dos Toucinheiros, atravesse a passagem estreita entre o Museu do Azulejo e a ponte ferroviária, experimentando assim como o traçado da linha do Norte quase colidiu com aquele edifício. Nuno Pires Soares explica porque é que é tão estreita: aquando da projeção da linha férrea, no século XIX, os responsáveis não tiveram em consideração a proximidade aos monumentos.
Atravesse a estrada de Xabregas e a uns 300 metros para nordeste, vai ao encontro do Beco dos Toucinheiros. Logo à entrada dará com um edifício fabril abandonado que, à vista desarmada, poderia passar despercebido se não fosse a chaminé a denunciá-lo. Albergou a fábrica Samaritana e posteriormente a Sociedade Têxtil do Sul.
Ziguezagueando, o Beco dos Toucinheiros liga a Estrada de Xabregas ao bairro da Madre de Deus, atravessando a Vila Dias. Pode assim percorrer de uma ponta a outra esta fiada de pequenas casas, dando conta de como se vive ainda hoje nas vilas operárias. No final da Vila Dias, vire à esquerda e prepare-se para a única subida deste roteiro.
- Entre hortas e fósseis, com o rio ao fundo
Subindo com tranquilidade, observe nas traseiras da Vila Dias a diversidade das hortas que trazem o campo para a cidade, com o porto e o rio em fundo. Do lado oposto, olhando com atenção vai encontrar fósseis. Sim, leu bem. Apesar da altura a que se encontra e da distância em relação ao rio, estes fósseis indicam que, em tempos longínquos, as águas do Tejo chegaram aqui.
- A tipologia diversificada do Bairro da Madre de Deus
No final da subida, entra no Bairro da Madre de Deus. Este bairro, projetado no final dos anos 1930, albergava várias tipologias de casas. Pode identificar as diferenças pela largura das fachadas e o número de janelas. Outros bairros semelhantes, a imitar o ambiente de aldeia, foram edificados pela mesma altura nas zonas periféricas da cidade: o Bairro da Encarnação, o Restelo e o Bairro de Santa Cruz.
Em 1890, as zonas de Madredeus, Xabregas e Beato eram locais de habitação de operários, sobretudo das fábricas de tabacos e de têxteis da área oriental, escreve Ana Alcântara, investigadora da NOVA FCSH, neste artigo de 2016. No Estado Novo, o Bairro da Madre de Deus foi alvo de uma intervenção pública e construíram-se casas com rendas económicas. Sabe o que as distingue das restantes? A altura. Observe como a maioria dos edifícios são apenas de dois pisos.
A vista aérea sobre o bairro evidencia o planeamento a régua e esquadro, com o Largo da Madre de Deus no ponto mais alto e a Rua Dom José de Bragança a separar os dois flancos. Desça essa rua a caminho da Rua Nicolau Tolentino para uma nova etapa.
- Estrada de Marvila: da Azinhaga das Bruxas à Quinta das Pintoras
No final da Nicolau Tolentino, encontra à sua esquerda um edifício famoso no bairro. Não se deixe enganar pelo que vê de fora; lá dentro, o Ateneu da Madre de Deus tem um salão pitoresco, local de inesquecíveis bailes de gerações passadas.
Vire à esquerda e prossiga pela Estrada de Marvila. Uns passos adiante, do lado esquerdo vai encontrar a Azinhaga da Bruxa, uma passagem mais estreita que está também ladeada por muros. Repare nos dois tipos de pedras do pavimento, assim adequado a veículos de tração animal.
Prosseguindo pela Estrada de Marvila, encontra a Quinta das Pintoras, dividida em duas partes por esta estrada. A hipótese de visitar os seus jardins pode tornar-se realidade; entretanto pode espreitar o interior luxuriante através dos portões, de um lado e do outro.
- Da Escola Industrial Afonso Domingos ao Geomonumento da Rua Capitão Leitão
No cruzamento com a Rua Miguel de Oliveira, à esquerda, repare no imponente edifício no alto. Albergou a antiga Escola Industrial Afonso Domingos, frequentada durante décadas sobretudo por filhos e netos de operários e ferroviários. Com o fim do ensino técnico passou a denominar-se Escola Secundária Afonso Domingos. O edifício deixou de funcionar como escola em 2010.
Seguindo em frente, vai prosseguir na Estrada de Marvila agora mais larga, uma estrada “à moda” do Estado Novo, como explica Nuno Soares Pires. Além de ser pavimentada com paralelepípedos, possui largos passeios arborizados. Do lado direito, existiu a Fábrica Nacional de Sabões, entre 1912 e 1990. Em instalações modernas de betão armado chegaram a trabalhar mais de 500 pessoas. Hoje apenas restam alguns muros. Tudo foi demolido e ficou um vazio urbano.
Vire à direita, atravesse o Pátio do Marialva, passe a ponte sobre a linha férrea do Norte e desça as escadinhas a caminho da Marvila ribeirinha. Ao chegar à Rua Capitão Leitão, o seu olhar “tropeça” num geomonumento da cidade, uma diversidade de camadas que compõem aquela encosta. Sim, entre cerca de 24 a cerca de cinco milhões de anos (o miocénico médio), o rio Tejo chegou aqui. O monumento geológico da Rua Capitão Leitão junta-se a outros, cuja localização está aqui assinalada.Um deles dá pelo nome de Rio Seco e fica no lado ocidental de Lisboa.
- A sumptuosidade do Palácio da Mitra (Rua do Açúcar, 64)
Prossiga pela Rua Capitão Leitão, um espaço em renovação urbana onde se sucedem bares, galerias e outros espaços culturais, até chegar à Rua do Açúcar. Vire à esquerda.
Um roteiro pela Lisboa oriental não ficava completo sem um palácio. Depois de ter observado um monumento natural com milhões de anos, dará um salto no tempo quando, 200 metros adiante, chegar ao Palácio da Mitra, do século XVII. Observe como a mitra papal está destacada nos seus portões de ferro forjado.
O Palácio da Mitra, mandado construir nessa época, foi alvo de muitas intervenções de restauro. Propriedade da Câmara Municipal de Lisboa, está classificado como Monumento de Interesse Público e, atualmente, acolhe a Associação Nacional de Freguesias (ANAFRE).
- Vila Pereira Henriques (Rua do Açúcar 20-50)
Caminhando para norte pela Rua do Açúcar, vai encontrar um conjunto de casas intimamente ligado a uma das atividades de exportação que pulsavam na freguesia de Marvila, o vinho. A vila Pereira Henriques funcionou como local de trabalho no rés-do-chão – principalmente para o fabrico de vasilhames de madeira para armazenar o vinho – e local de habitação, no primeiro andar.
Estes fogos foram mandados construir em 1887 pela Sociedade Santos Lima e Companhia. Observe as fachadas das casas e repare nos seus pormenores. Veja como as janelas estão simetricamente dispostas e dê conta da inexistência de espaço entre os vizinhos. À época, se um vizinho quisesse falar com o outro não era necessário muito esforço.
Em frente à Vila Pereira Henriques, do outro lado da Rua do Açúcar, fica o Cantinho do Vintage, a maior loja de móveis usados da Europa. Entre no antigo armazém onde se situa e espreite utensílios, móveis e acessórios de outras décadas, hoje recuperados e que estão em voga.
- Em plena Marvila ribeirinha
Alguns metros para norte, chega à Praça David Leandro da Silva e ao seu jardim de formato triangular. É uma praça com majestosos edifícios, outrora fábricas ou escritórios que hoje são espaços criativos, como a antiga Sociedade Comercial Abel Pereira da Fonseca. Está no coração de Marvila, uma freguesia fortemente marcada pelos seus traços industrias e comerciais e, por isso, “quase nostálgica“.
Apesar de o Parque das Nações ter sido um projeto de regeneração urbana relativamente bem-sucedido, esta área oriental manteve-se com baixo dinamismo económico e social até há meia dúzia de anos. Hoje enfrenta o desafio da renovação e da reabilitação, entre propostas de teor mais conservador, de preservação da sua identidade e de património industrial, por um lado, e a pressão do mercado, por outro. Antigas fábricas estão a ser alvo de intervenção de vários setores, principalmente o artístico e o de restauração. O caso mais conhecido de uma intervenção de sentido cultural é a Fábrica Braço de Prata, antiga fábrica de armamento.
- O final
Ao cruzar a Rua Amorim com a Avenida Infante Dom Henrique, o sinal não deixa enganar. Está a passar o portão invisível que dá acesso ao porto de Lisboa. Na popularmente chamada ‘Marina dos Pobres’, pode observar embarcações modestas de quem tem também prazer em navegar pelo Tejo e em pescar nas suas águas.
O roteiro fica por aqui, cerca de cinco quilómetros desde o ponto de partida, andando sobretudo pelo interior de Lisboa Oriental antes de chegar ao rio.
Se continuar a caminhar para Norte, passará por novos condomínios em construção onde antes eram os Armazéns da Matinha e chegará ao Parque das Nações, a antiga doca dos Olivais antes da intervenção da Expo 98. Esta área, revitalizada e a pulsar de atividades e vida, em frente ao rio, tornou-se a escolha para viver de novos habitantes da Lisboa oriental.
Explore o roteiro de forma interativa através deste mapa: