Há um demónio escondido na Casa da Severa

As escavações na Casa da Maria Severa, conhecida fadista da Mouraria, abriram a “caixa” do molde de um demónio em 2010. Esta é uma descoberta rara na arqueologia devido ao cruzamento de superstições e crenças num único objeto.

Com o rosto pintado de feições humanas e animalescas, o molde descoberto mostra olhos e nariz representados de forma grotesca. Uns pequenos chifres na cabeça, duas garras em cada perna, agarradas a cascos. Do lado direito afigura-se uma cauda ou o que resta dela. Esta podia ser uma figura banal de um demónio. Mas não é.

Este molde de artefacto é símbolo de uma era passada que demonstra as sinergias entre os cristãos e os islâmicos na Mouraria dos séculos XIV e XV. O mais curioso é que este objeto foi encontrado durante as escavações da casa da Maria Severa Onofriana, conhecida fadista e prostituta que viveu no século XVIII, que tiveram início em 2010.

“Mais do que um molde, este pequeno artefacto é o reflexo de como a própria cidade era uma encruzilhada de crenças e superstições que raramente se encontram no contexto arqueológico”, afirma Tânia Casimiro, investigadora do Instituto de História Contemporânea (IHC) e do Instituto de Arqueologia e Paleociências (IAP) da NOVA FCSH, em conjunto com António Marques, do Centro de Arqueologia de Lisboa, num artigo apresentado em conferência (2018).

Os investigadores acreditam que a peça foi cozida num forno potente, provavelmente num onde se coziam as louças vermelhas na Idade Média, devido à sua dureza. As representações deste cariz são raras no país, referem Tânia Casimiro e António Marques, logo “a sugestão que se trata de uma representação demoníaca passa pelo facto de esta figura apresentar características semelhantes aos diversos demónios e diabos de outras representações medievais”. A que mais se aproxima é a figura do diabo na obra de Gil Vicente, Auto da Barca do Inferno, de 1531.

Esta figura é comummente associada a demónios que atacavam maioritariamente mulheres do que homens porque “o pénis erecto é claramente uma demonização dos seres durante a Idade Média, até porque o diabo entra pelos buracos do corpo, levando a que as mulheres sejam as suas vítimas preferenciais”.

Desenho e escala do artefacto encontrado na Casa da Severa. Créditos: Tânia Casimiro e António Marques

Os demónios que a Mouraria esconde

A Mouraria passou a ser o local onde D. Afonso Henriques, desde o Foral de 1170, determinou a residência de habitantes religiosamente islâmicos que permaneceram na cidade depois de 1147. Nesta morada, os residentes começaram a criar a sua “própria estrutura de funcionamento” e a estabelecer alguns vínculos com restante povo lisboeta.

Começou a existir uma forte tradição islâmica neste canto de Lisboa, principalmente nos séculos XIV e XV, com o aumento urbanístico da zona. A Mouraria passou a incluir a atual Rua do Benformoso, ação que se denominou por “Arrabalde Novo”. Assim, descrevem os investigadores, “percebe-se arqueologicamente que, a um período de sucessivos episódios destrutivos, atribuíveis ao seculo XIV, com pestes, abalos sísmicos e guerras, se sucedeu um outro período de crescimento e renovação urbanística”. Foi neste cenário que o molde figurativo do demónio foi recuperado.

Contudo, é controversa esta descoberta porque no reinado de D. João I, em lei promulgada em 1385, proibiu-se a adoração a imagens não cristãs. A crónica de Duarte Nunes de Leão revela que antes da batalha de Aljubarrota, a cidade de Lisboa prometeu que não ia continuar a adotar práticas que também incluíam as de feitiçaria.

Apesar das superstições e das feitiçarias pelas quais vários lisboetas iriam ser acusados e punidos nos séculos XIV a XVI, o que é curioso é que a referências documentais a imagens ou a ídolos nesta época é escassa. Estes tinham como “missão” ajudar ou fazer alguém cair em desgraça, normalmente aos maridos, segundo conta Tânia Casimiro e António Marques.

A descoberta deste artefacto veio confirmar que os ídolos continuaram a construídos depois da promulgação da lei de D. João I. Apesar das “diversas cartas de perdão que foram identificadas, acusando mulheres de colocarem imagens em cera debaixo da cama dos maridos, mostra que estas práticas continuaram a ser recorrentes durante os séculos subsequentes” devido, também, ao contexto político e aos abalos sísmicos que à época se sentiam e que fomentaram ainda mais as superstições dos lisboetas.

Fotografia: Molde encontrado do demónio. Créditos: Tânia Casimiro e António Marques.

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Ana Sofia Paiva
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