Livros de Milagres: o que nos dizem da Lisboa Medieval

Os demónios apoderavam-se mais facilmente das mulheres e só eram afastados com orações e missas. Noutros casos, a água tinha poderes curativos, como no de um rapaz  torturado durante seis anos por um espírito mau. Estes são alguns dos relatos incluídos nos livros de milagres que uma investigação da NOVA FCSH revela.

Martim Martinz estava preocupado com o filho. Há seis anos que era tentado pelo demónio, que lhe aparecia de 15 em 15 dias ou uma vez por mês, e deixava o filho fora de si. Para o curar, o pai participou em várias romarias, mas sem sucesso. O filho não se conseguia livrar do demónio. Até que Martim Martinz ouviu falar dos milagres do Santo Contestável e levou o seu filho ao santuário, onde lhe deu de beber a água que brotava da terra onde estava sepultado o santo.

O efeito foi imediato: a água livrou o demónio do corpo do filho, há seis anos torturado. Para agradecer ao santo, Martim Martinz foi em romaria até ao Mosteiro do Santo Contestável, em Lisboa. Este é o 161º milagre que está escrito no Livro de Milagres do Santo Constestável, que faz parte da coletânea dos Livros de Milagres, escritos na Idade Medieval. Esta foi a única cura através da peregrinação a um santo.

“No período medieval, acreditava-se que os demónios atacavam os seres humanos, despertando todas as formas de tentação com o propósito de frustrar os planos de Deus para a salvação da humanidade”, escreve Artur Gonçalves na dissertação de Mestrado em História (2019) sobre os casos de pandemónios em Portugal e em Espanha. As histórias estão espalhadas pelos Livros de Milagres, coletâneas escritas a partir do século XIII e que mostram a face religiosa e supersticiosa de diversas localidades, entre as quais Lisboa.

Estes livros “eram encarados como um dos mais importantes meios de comunicação entre o plano terreste e o Além, neles se vendo espelhada a ideia de que Deus continuaria a revelar-se aos homens através de prodígios” e, no total, foram identificados 24 casos de possessões nas cinco obras analisadas. Nas referentes a Lisboa, os casos eram maioritariamente curados pela presença dos jazidos dos santos ou da água que brotava dessa terra.

No Livro de Milagres do Bom Jesus de Lisboa, de 1439, o Mestre André Dias mostra que os sucessos da confraria do Santíssimo Nome de Jesus, no Mosteiro de São Domingos de Lisboa, eram desencadeados pela água que estava dentro do santuário “tida como santa e dotada de poderes curativos capazes de fazer os cegos ver, os coxos voltar a andar e os membros tolhidos sararem”.

Também o Livro Milagres de S. Vicente de Lisboa demonstra esta dimensão. Para além de relatar a vinda das relíquias por D. Afonso Henriques, em 1173, também explica as festividades e as reações da população: “através do toque nas relíquias do santo, ou fazendo uma vigília de oração em frente destas, se torna possível expulsar demónios da obsessão corporal, fazer os mudos falar, os coxos andar, socorrer náufragos no mar”, explica.

Um dos episódios milagrosos é apontado aquando da trasladação do corpo do santo para a Sé de Lisboa, em que o Mestre Bento “abeirando-se ao altar a fim de orar terá sido inundado por uma fragância que o deixaria em êxtase e descontrolo, levando-o a orar até que tal odor desaparecesse”, apontando-se uma nuvem luminosa para ilustrar esse odor. Apenas desapareceu depois das sucessivas orações e o culto ao santo teve um enorme impacto, que continuou para outras entidades.

Contudo, a investigação de Artur Gonçalves destaca que, nas obras analisadas, os possuídos eram sobretudo mulheres, “conotadas como fracas, de quem os demónios mais facilmente se apossavam e que só ao final das romarias, com orações e missas, se veriam livres dos maus espíritos”. Para além da coletânea de obras, o investigador analisou as fontes doutrinárias e legislativas da época.

Concluiu que, enquanto nos Livros de Milagres, as pessoas são vítimas de uma força sobrenatural e maligna, nas fontes legislativas e doutrinárias, são vistas como “marginais e manipuladoras das forças malignas”. Assim, os santos são vistos como os curandeiros, personalização dos poderes de Deus, e nas fontes legislativas e doutrinárias à época, tentava-se punir e travar o uso de práticas fora do normal, com possibilidade de reabilitação. Feiticeiros, curandeiros e bruxas inseriam-se nesta categoria.

Imagem: Inferno. Autor: mestre português desconhecido c.1510-1520. Proveniente do Mosteiro de São Bento da Saúde, faz parte da coleção permanente do Museu Nacional de Arte Antiga. A pintura propõe uma imagem medieval do Inferno.

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Ana Sofia Paiva
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