As várias vidas do Cais do Sodré

Conhece o bairro dos Remolares? Agora é mais conhecido por Cais do Sodré, uma zona que já foi perigosa para a saúde pública, um local de espiões da Segunda Grande Guerra e o sítio de eleição para as classes altas. Paralelamente, foi frequentado por marinheiros e prostitutas. Eis parte da história deste cais.

O Cais do Sodré é hoje um espaço renovado, com o Jardim de Roque Gameiro a fazer as honras da vista sobre o Tejo. De noite, reina a animação e o convívio até de madrugada, dado que é um dos locais eleitos para a diversão noturna. Jordi NofreJoão C. Martins, investigadores do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais e Humanas da NOVA FCSH (CICS.Nova), e Domingos Vaz, Rosa Fina, Jorge Sequera e Patrícia Vale, de outros centros de investigação, escrevem sobre o desconforto que é sentido na Rua Cor de Rosa e na freguesia de São Paulo e traçam uma breve história sobre o Cais do Sodré neste artigo (2018) publicado no Journal Urban Research & Practice.

Bairro dos Remolares. Era assim que era conhecido o Cais do Sodré no início do século XIX. Era uma área muito poluída, com praias fluviais sujas de lama, como a Praia da Boavista. Era um caso grave: “uma vez que os resíduos da cidade eram frequentemente despejados, tornava-se uma séria ameaça à saúde pública”, escrevem os investigadores.

A partir de 1855, esta área começou a ser tratada e ampliada. Os trabalhos duraram 12 anos, até 1867. Construídos os armazéns para albergar os produtos vindos de pequenas embarcações, os marinheiros e outros homens ligados à pesca começaram a residir nas proximidades. Eram eles os principais moradores, a paredes meias com empresários ligados à industria da importação e da exportação de produtos: “[os empresários] escolhiam este bairro para morar, uma vez que a área se tornara o lugar mais importante da cidade para conexões comerciais internacionais”.

Com a vinda destes grupos, o Cais do Sodré era já no final do século XIX “uma referência social da época”. Era palco para intelectuais, burgueses, dândis, artistas e indivíduos da classe alta, em especial no Hotel Central, descrito por Eça de Queirós na sua obra Os Maias, apontam os investigadores. No efervescente século XX, espiões da Segunda Guerra Mundial e comerciantes internacionais escolhiam o Café Royal, outro “ponto de encontro” na zona.

A abertura de outros clubes mais direcionados para a classe alta no centro de Lisboa, na década de 1920, e a sua pouca acessibilidade aos marinheiros e funcionários portuários, fizeram com que surgisse uma noite alternativa no Cais do Sodré, principalmente na Rua Nova do Carvalho (hoje a Rua Cor de Rosa). Entre 1930 e 1980, surgiram as primeiras discotecas como a Jamaica, a Europa, o Tamisa (hoje conhecida por Tóquio), Texas Bar (atualmente o Music Box), Shangri-La (conhecido como o Bar do Cais), entre outras. A Pensão do Amor, antes lugar promíscuo e de marinheiros, é hoje “um dos clubes mais exclusivos da cidade”.

A área sofreu uma transformação a partir da década de 1990 e no início do século XXI: “devido à expansão e mercantilização da economia de lazer noturna no Bairro Alto e ao surgimento de novos locais de animação noturna em toda a cidade” como Alcântara, Santos, as Docas ou a área oriental da cidade. Isto levou a que o Cais do Sodré fosse marginalizado, apontam os investigadores: “O crime, o tráfico de drogas, a prostituição marginal, a pobreza urbana, a exclusão social e os altos níveis de decadência urbana tiveram um impacto social e residencial dramático na área, especialmente na última década e meia”.

Foi por causa destes fatores que muitos residentes de classe mais baixa começaram a  deslocarem-se para bairros mais periféricos da cidade. No entanto, verificou-se que empresários e indivíduos de estatuto mais alto começaram a residir nesta área, apontam os investigadores com recurso a dados censitários, entre 2001 e 2011.

Atualmente, a habitação e a noite do Cais do Sodré estão vivas e recomendam-se porque são os estudantes e os mais jovens que têm um “papel central no processo de rejuvenescimento e revitalização socioeconómica de bairros anteriormente degradados”. Além disso, esta parte da cidade é cada vez mais atraente para investigadores, CEO’s e cientistas residirem, apontam os investigadores.

Fotografia: Panorâmica para o Cais do Sodré e para a Freguesia de São Paulo (1905). Arquivo Fotográfico de Lisboa

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Ana Sofia Paiva
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