As vidas do jardim do Campo Grande – Parte III

Um ciclone e, depois, um arquiteto mudaram o rumo do Jardim do Campo Grande no século XX.

No final do século XIX, o jardim do Campo Grande era um bosque na periferia da cidade com árvores altas e era conhecido pela Feira das Nozes ou Feira de Outono. Em comparação com o século anterior, a zona cresceu de uma forma “gradual” que “contrasta com o descampado que tinha sido no século anterior”, escreve Sandra Crespo Pereira, na dissertação de mestrado em Ciências Musicais (2020) da NOVA FCSH, sobre as sonoridades do jardim do Campo Grande.

A investigadora serve-se dos escritos de Eugénio Vieira, de 1910, para descrever o jardim no início do século XIX. Se antes o espaço era apenas frequentado por indivíduos de classes mais altas, no final era um espaço mais diversificado. O escritor, porém, é o único a relatar sobre uma realidade “escondida”, refere Sandra Crespo Pereira: “[Eugénio Vieira] Faz alusão (…) a ciganos, sem-abrigo e a pessoas que aí vão para se suicidar, algo que parecia não ser segredo para quem frequentava o jardim na época”.

Numa das avenidas do jardim passeavam cavaleiros e cavalos, havia passeios pedonais ou carruagens que transportavam “gentis mulheres das classes abastadas, e até de estirpes de menos privilegio”, descreve Vieira. Os ciclistas eram, também, presença assídua no espaço e os barcos no lago eram uma das sonoridades típicas do jardim.

Do século XIX para o seguinte “é possível notar que não só o parque assumiu novos usos e funções como também o seu redor se desenvolveu, havendo neste momento estabelecimentos que atraem a população, contrastando com um período em que aí se encontrariam somente palácios e casas de campo”, observa a investigadora.

É então que no início do século XX começam a ser normais as corridas de hipismo, particularmente as corridas de trote e um campeonato de sela, em 1921, e, mais tarde, corridas de automóveis, motociclos e ainda provas pedestres. Em 1930, o Hipódromo de Lisboa seria inaugurado nas proximidades do jardim.

O golpe político de 28 de maio de 1926 batizou o jardim com um novo nome: Campo de 28 de Maio, que vigorou apenas de 1935 a 1949. Foi neste espaço temporal que o jardim sofreu as maiores alterações deste século, dado o seu estado de degradação. Apesar de obras como a demolição do Chalet das Canas, na década de 1930, para dar lugar a um espaço infantil, e o aumento do lago, foram plantadas árvores sem um plano prévio de arborização, o que resultou num matagal e estado de abandono mais visível na área.

O Diário de Lisboa noticiou as obras de requalificação, em 1938, mas estas não começariam devido ao violento ciclone de 15 de fevereiro de 1941. O mesmo jornal descreveu o fenómeno natural como “de extraordinária violência que derrubou chaminés, telhados e árvores, chegando a atirar, nas ruas, os transeuntes ao chão”.

Lago do Jardim do Campo Grande onde são visíveis vários barquinhos a remos (e uma chaminé de fábrica ao fundo) na década de 1910, fotografia de Joshua Benoliel.

 

O (in)sucesso da requalificação

É apenas em 1945 que se iniciam as obras no jardim do Campo Grande a cargo do arquiteto Francisco Keil do Amaral (1910-1975). O mesmo tinha sido responsável por obras na cidade como o Parque Florestal de Monsanto, o Parque Eduardo VII de Inglaterra e ainda o Aeroporto de Lisboa A intervenção no jardim do Campo Grande “parece ter sido uma das mais significativas, tendo sido iniciada em 1945 e terminado na década de 1960 com a construção de uma piscina infantil na zona sul”, afirma a autora.

A área do jardim é aumentada e a remodelação aconteceu “em paralelo à requalificação urbana de toda a zona envolvente do Campo Grande, que a tornou mais acessível e integrada na cidade de Lisboa”. Em 1955, a inauguração do metropolitano facilitou o acesso a esta zona.

A construção do Hospital Júlio de Matos, o Hospital de Santa Maria e ainda “a construção do Bairro de Alvalade, da Cidade Universitária e a urbanização da envolvente do parque, o Jardim do Campo Grande viria a adquirir nova importância como espaço de sociabilidade e recreio”. O Restaurante Alvalade foi uma das atrações do lado norte do jardim, junto ao lago, demolido em 1960 para dar lugar ao centro comercial Caledoscópio. O espaço abriu salas de cinema em 1974 e tinha, ainda, outras atividades, como restaurantes, lojas, uma livraria e ainda uma discoteca. Hoje, o edifício pertence à Universidade de Lisboa e é um Centro Académico e um restaurante de fast food.

Apesar do sucesso da intervenção de Keil do Amaral, o jardim não voltou a ter obras de requalificação até 2000. Desde 2013 que a Câmara Municipal de Lisboa (CML) tem feito obras de melhorias no jardim, primeiro na zona norte e depois na zona sul. O jardim do Campo Grande tem ainda campos de pádel, um café concerto, no lado norte, e ainda um parque para cães.

“Assim, os sons das carroças e cavaleiros de antigamente são hoje substituídos pelos dos automóveis e aviões, e os cavalos e o gado, que aí se proibiam na primeira metade do século XIX, são substituídos por cães passeados por trela e por periquitos”, conclui a investigadora. Passear no jardim do Campo Grande é conhecer as sonoridades de um jardim de outrora.

Fotografia: Corrida de automóveis organizada pela Fiat (191…), Arquivo Fotográfico de Lisboa, Joshua Benoiel.

Escrito por
Ana Sofia Paiva
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