Da janela à rua…

Em 1970, “Da janela à rua” era título frequente na página 4 do Diário de Notícias, a página ‘das desgraças’. Apresentava muitas notícias de letra miudinha, em contraste com a publicidade. Notícias descarnadas, em registo factual e fatalista.

Foi internado no Hospital de São José com diversas contusões, Paulo Jorge Monteiro Campos, de 3 anos, morador na Travessa do Terreiro do Trigo, 52, 1º. A infeliz criança caíra da janela da residência à rua.” Também a notícia seguinte dá conta de um acidente com uma criança, neste caso vítima de queda num depósito de água não protegido. Já a terceira indicava como vítima “uma mulher trucidada por um comboio”.

As parcas palavras destas notícias breves muito elucidam sobre o que eram as notícias sobre acidentes sob censura, destaca Cristina Ponte, da NOVA FCSH, que investigou no seu doutoramento (2002) as notícias sobre crianças ao longo de 30 anos (1970-2000) naquele jornal.

No tempo em que o fadista Tony de Matos cantava “O destino marca a hora/pela vida fora/que havemos de fazer?”, era este o tom fatalista destas  peças breves, escritas com base em  registos provenientes de esquadras e de hospitais.

A notícia publica o nome, idade e morada da vítima criança, que é quase sempre adjetivada como” infeliz”, “desditosa”, “malograda”. Mas o acidente também podia acontecer pela sua imprevidência. Daquele mesmo ano, outros títulos da página 4, sobre os mais novos: “A criança provocou a explosão de uma granada” (29 de outubro); “Uma criança de dezoito meses meteu-se debaixo de um automóvel e ficou gravemente ferida” (7 de março).

Em 1970, peças breves sobre acidentes, como estas, constituem quase metade (45%) das notícias que referiam crianças naquele jornal, seguidas por peças sobre abandonos  de crianças (9%). Os abandonos eram também quase sempre tratados em registos breves e factuais. Uma notável exceção aconteceu quando o local do abandono ocorreu nas Avenidas Novas.

Os acidentes que envolvem crianças continuaram e continuam a ser notícia. Mas em democracia pôde mudar o seu tratamento, passou a ser possível falar de contextos, da falta de segurança do ambiente à sua volta a motivos familiares que levam a que crianças pequenas fiquem sozinhas em casa, destaca a investigadora.

Em 2005, este estudo foi atualizado e alargado a mais jornais (Público, Jornal de Notícias, Correio da Manhã) e aos noticiários de televisão de canal aberto (RTP, SIC, TVI). O projeto Crianças e Jovens em Notícia confirmou que se há notícias de acidentes que continuam a ser apresentados numa base melodramática não muito diferente, outras peças jornalísticas tratam o tema como problema social: apresentam estatísticas, ouvem especialistas em segurança (rodoviária, doméstica) e fontes como a Associação para a Promoção da Segurança Infantil (APSI). Interpelando políticas e práticas, colocam o acidente numa perspetiva social e não fatalista.

As conclusões do projeto Crianças e Jovens em Notícia encontram-se publicadas em livro ( Livros Horizonte, 2009).

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