O que Almada Negreiros pintou nas gares marítimas de Lisboa desafiou a imagem mitificada do Portugal salazarista. As objeções estéticas colocadas ao mais alto nível não disfarçaram a desconfiança política, revela uma investigação em História da Arte da NOVA FCSH.
Almada Negreiros começou a preparar os frescos do interior da Gare Marítima de Alcântara em 1943, ano da inauguração do edifício, representando ali cenas alegóricas da Lisboa ribeirinha e do Portugal rústico, a lenda da Nau Catrineta e o milagre de D. Fuas Roupinho. Estas propostas deixaram o engenheiro Duarte Pacheco “furioso e indignado”. O poderoso ministro das Obras Públicas esperava outra coisa para receber os estrangeiros, não aqueles “mamarrachos”.
Para opinião mais esclarecida, Salazar mandou chamar António Ferro, diretor do Secretariado de Propaganda Nacional, que conhecia Almada desde a aventura futurista da revista Orpheu e que com ele trabalhara em vários projetos e exposições do regime. Ferro defendeu o artista, enaltecendo a “magnífica” qualidade dos painéis de Alcântara. Conseguiu convencer o ditador.
Apesar das encomendas públicas, de obras em edifícios marcantes e dos prémios que recebera, o modernista Almada suscitava dúvidas à ortodoxia do Estado Novo. Havia quem se lembrasse dos manifestos e polémicas dos seus tempos de juventude. Por isso, o escrutínio foi ainda mais apertado quando o arquiteto Porfírio Pardal Monteiro insistiu em manter a colaboração com Almada na Gare Marítima da Rocha do Conde de Óbidos, como explica este texto (2014, em inglês) de Paula Ribeiro Lobo, investigadora do Instituto de História da Arte da NOVA FCSH.
A “conveniência” em entregar ao pintor as decorações da segunda gare foi questionada em 1946 pelo ministro que sucedera a Duarte Pacheco. Percebendo o que estava em causa, João Couto, diretor do Museu Nacional de Arte Antiga, defendeu num parecer oficial que as pinturas de Almada nada tinham que ver com as de Cândido Portinari (artista ligado ao Partido Comunista Brasileiro, e que por cá inspirava a pintura de temática social do movimento neo-realista).
Entretanto, o processo arrastava-se. Outras dúvidas, outras consultas, outro ministro, sempre a mesma questão em fundo. A Gare da Rocha do Conde de Óbidos foi inaugurada em junho de 1948. Almada tratou das decorações, mas em finais de 1949 ainda se discutia se os painéis eram para manter. E foi João Couto, em derradeiro parecer, quem os salvou da destruição que se anunciava.
Nessa gare marítima pintou Almada dois trípticos. Num, intitulado Litoral, representou uma Lisboa de domingueira tristeza. No outro, a que chamou Cais, pintou o drama das partidas de (e)migrantes, retrato coletivo que contrastava com a fantasiada imagem do país criada pela propaganda do Estado Novo. Para Paula Ribeiro Lobo, trata-se de uma extraordinária reflexão visual sobre a condição de um povo dividido entre a necessidade da partida e o vazio da permanência.
Considerado pela historiografia da arte como uma obra-prima da pintura portuguesa, esse Cais de escala monumental ficou, assim, inscrito num espaço simbólico da cidade.