Duas figuras deitadas. Uma feminina, adormecida; outra masculina, acordada a olhar a sua amada, com uma lamparina na mão. Quem são estas personagens representadas num vitral de Almada Negreiros? Uma investigação da NOVA FCSH desvenda o mistério que dividiu tantas opiniões.
Foi no século XX que Almada Negreiros aceitou a encomenda de um vitral para decorar uma residência na Rua de Alcolena, no Bairro do Restelo. A obra não foi datada pelo artista e o seu simbolismo também não ficou claro.
Em 2001, foi leiloado e vendido à Assembleia da República sob o título “A Queda de Ícaro”. Cátia Mourão, investigadora no Instituto de História de Arte (IHA) da NOVA FCSH, rejeita essa interpretação da obra e afirma neste artigo (2007): “O tema de Eros e Psique parece-nos, sem margem para dúvida, o correcto”.
A mãe de Eros grego (ou Cupido romano), Vénus, era bela, mas não tanto quanto Psique. Invejosa, pediu ao filho que, com a sua flecha, levasse a jovem a apaixonar-se pelo homem mais feio e pobre. No entanto, Cupido enamorou-se dela e, para que pudessem ficar juntos, exigiu que a sua identidade não fosse revelada – a sua amada não o podia ver, apenas ouvir. É a próxima cena que Almada representa no seu primeiro estudo preparatório da obra: vemos Psique a quebrar a sua promessa e a aproximar uma lamparina do rosto de Cupido.
A história continua. Psique deixa cair uma gota de azeite quente em Cupido, que foge ao aperceber-se da traição. Vénus castiga-a com uma descida até ao mundo dos mortos: tinha de lá trazer uma caixa que continha a beleza da deusa Prosérpina. A vaidade atraiçoou-a e, quando abriu o recipiente, foi induzida num sono prolongado.
Já no segundo estudo e obra final, o artista não representa exatamente o que se sucedeu a seguir na lenda. Em vez de mostrar Eros a acordar Psique, mostra-o a contemplá-la, com uma lamparina na mão – que antes estava na posse da amada – e sem as suas asas habituais, que agora estão no corpo dela. Essa inversão de papéis entre personagens está também no poema Eros e Psique de Fernando Pessoa, amigo de Almada: “[O Infante] vê que ele mesmo era / A Princesa que dormia”.
Eros revê-se em Psique e assim se dá a comunhão entre amados, que é a chave para entender o vitral. Eros era, no tempo pré-socrático, “filho do Caos, vazio original do universo, e detinha a força ordenadora e unificadora dos elementos”, como aponta a investigadora. Agora, retoma esse papel para acordar Psique do sono que simboliza o desconhecimento e ser o seu guia no alcance ao conhecimento superior. As asas da jovem representam, portanto, a libertação de uma condição inferior.
Um último aspeto está na origem deste vitral: a amizade entre o artista e os proprietários da residência para a qual foi criado. Foi uma relação próxima que levou Almada a modificar o seu primeiro estudo segundo a encomenda que José Manuel Ferrão e a sua mãe terão feito, “de características muito específicas, talvez não apreendidas logo no início”, explica Cátia Mourão. O destino do vitral foi o estúdio privado de José Manuel Ferrão, artista, fundador da Revista Eros, autor de Alquimia do Sonho e, por fim, admirador de Pessoa – o que reforça que a metáfora do conhecimento é, de facto, o tema da obra.
Imagem em destaque: Eros e Psique. José Almada Negreiros (1893-1970). Não datado (1954). 57,5 x 325 cm. Vitral. Assembleia da República. Fotografia de Carlos Pombo.