Uma Lisboa presa na hostilidade: as memórias das Brigadas Revolucionárias no Verão Quente de 1975

Nos bastidores de um país saído da Revolução de abril de 1974, uma organização de extrema esquerda continuava a agitar o panorama nacional. Isabel do Carmo, uma das fundadoras, relembra os tempos em que pairava a ameaça de uma guerra civil no país, que acabaria por se esfumar com o golpe militar de 25 de novembro. Investigadores do Instituto de História Contemporânea (IHC) da NOVA FCSH oferecem uma perspetiva sobre esta época.

O verão de 1975 foi agitado, inserido num clima político que tinha títulos incendiários nos jornais e refletiam um país à beira da guerra civil. Pouco mais de um ano após a Revolução de abril, Portugal assistia à expulsão de patrões e gestores das empresas em formas de protesto radicais como greves, sequestros ou ocupações, e a confrontos entre defensores das políticas revolucionárias e políticas moderadas.

Movidos pela garantia das liberdades, os trabalhadores da Cintura Industrial de Lisboa (CIL) organizaram-se em Comissões e Intercomissões de Trabalhadores. A primeira intercomissão foi a Interempresas, fundada em janeiro de 1975, e teve um papel importante na manifestação de 7 de fevereiro contra a NATO e nos despedimentos nas empresas, no primeiro de muitos casos de defesa do poder popular no pós 25 de abril.

Mas esta defesa estava associada à organização de extrema-esquerda que em 1970 surgiu em Portugal: as Brigadas Revolucionárias (BR). Estas tinham como objetivo enfraquecer a ditadura através de processos mais radicais como, entre outros, a sabotagem da guerra colonial ou a tentativa de rapto de personalidades ligadas ao regime ou à PIDE. Em setembro de 1973, as BR acabariam por ser incluídas no Partido Revolucionário do Proletariado, passando a designar-se PRP-BR.

Esta organização foi fundada por Carlos Antunes (1940-2021) e por Isabel do Carmo. Para ela, os motivos de descontentamento com a conjetura da época e a desvinculação ao Partido Comunista Português (PCP) eram claros: “Quarenta e quatro anos de resistência através de greves, algumas manifestações com milhares de pessoas, propaganda clandestina, muita repressão e sofrimento, não tinham abalado o regime. Após a morte política de Salazar e a sua substituição por Marcelo Caetano, não tinha havido nenhuma alteração”.

Precisava-se de outra reação. O PRP-BR era um partido que estava, sobretudo, “implementado quer em meio estudantil, quer em meio de um operariado mais jovem da cintura industrial de Lisboa”, elucida Ana Sofia Ferreira, investigadora que trabalha sobre as questões de violência política e dos partidos de esquerda radical no Instituto de História Contemporânea (IHC) da NOVA FCSH.  Acrescenta que “os católicos progressistas constituíam o aparelho logístico e de apoio às Brigadas Revolucionárias” e que “na fase do marcelismo, as Brigadas Revolucionárias tinham uma ação importante na dinamização da luta anticolonial.”

Mas após o golpe militar de 1974, o PRP-BR necessitava de delinear uma política para o futuro, por forma a garantir uma posição forte no processo revolucionário português. Assim, os membros pertencentes às BR passaram a abraçar o poder popular, em que o proletariado era apoiado pelos militares progressistas. “O que eles defendem não é a existência de uma estrutura armada clandestina, mas sim dinamizar o processo revolucionário, dinamizar as lutas de massas, as lutas dos trabalhadores, de forma a que os trabalhadores pudessem tomar o controlo”, explica Ana Sofia Ferreira.

Na opinião de Isabel do Carmo, o movimento de ocupação de casas devolutas foi bastante importante: “Foram principalmente as mulheres que o fizeram e era comovente ver como se instalavam com os filhos pequenos, finalmente com uma casa”, recorda a antiga dirigente do partido.

Mas o receio desta corrente socialista revolucionária por parte de um grupo moderado e unido de direita desencadeou o golpe militar de 11 de março. Esta foi uma tentativa fracassada dirigida por António de Spínola que, ao invés de cessar as greves operárias, provocou a maior crise governativa da revolução. Em reação, a esquerda realizou o I Congresso dos Conselhos Revolucionários de Trabalhadores, Soldados e Marinheiros, no Teatro da Cornucópia, onde os partidos da esquerda procuraram um compromisso para fazer frente à ascensão da direita. Começou a fase mais conturbada do processo revolucionário.

O Verão Quente de 1975 ficou, então, marcado por uma tentativa de radicalização das massas. De março até setembro, os setores da esquerda radical foram os protagonistas de alguns dos mais emblemáticos acontecimentos do processo revolucionário em andamento: o roubo de armas do Depósito de Material de Guerra (DGME), localizado em Beirolas, e a ocupação do jornal República e da Rádio Renascença, numa procura acesa pelo controlo da informação.

“Eu estive pessoalmente na ocupação da Rádio Renascença. Mas quem ocupou de facto foram os trabalhadores, sobretudo jornalistas. As pessoas dos partidos apoiavam, mas nunca tomaram conta dos microfones. Foram sempre os jornalistas a conduzir o processo”, conta Isabel do Carmo. “E este foi tão forte que o Pinheiro de Azevedo mandou para lá tropa, para calar a rádio, a tropa apoiou os jornalistas e o Pinheiro de Azevedo teve que pôr uma bomba no emissor da Rádio Renascença para calar as emissões.”

Neste período, organizações de extrema direita também participaram em operações maiores, como a explosão de uma bomba na Embaixada de Cuba, em Lisboa, que matou dois funcionários. Este foi apenas um entre dezenas de outros ataques à bomba contra pessoas ligadas a organizações de esquerda.

O comício da Frente de Unidade Revolucionária (FUR) sucedido a 12 de setembro, no Campo Pequeno, serviria para reforçar ainda mais a ideia do poder popular e a necessidade de armar os trabalhadores para combater um possível golpe de direita. “A FUR é o resultado, a expressão política deste projeto de resposta ao que se considerava a ofensiva de direita”, diz João Madeira, investigador do IHC da NOVA FCSH, que se dedicou sobretudo ao estudo das organizações marxistas-leninistas.

Ana Sofia Ferreira aponta que este processo foi, no fundo, um confronto claro entre dois blocos que ambicionavam o poder e que tinham objetivos diferentes para o futuro de Portugal: “O que se pretende para o país? A democracia ocidental, liberal, capitalista, ou o socialismo?”

O golpe militar de 25 de novembro marcou, assim, o término do processo revolucionário e a derrota do projeto político da esquerda radical, causado, no entender de Isabel do Carmo, pelo sectarismo e a obediência às geoestratégias internacionais. “Depois da contrarrevolução a 25 de Novembro de 1975, tudo se tornou mais difícil e uma parte do processo voltou atrás”, assume com decepção. “Aquilo que tinha sido nacionalizado foi entregue aos proprietários, as propriedades agrícolas voltaram ao semiabandono habitual e o curso político seguiu na corrente neoliberal, que depois se consagrou em 1979/80 com Reagan e Thatcher”, explica.

Apesar de diversos esforços para formar uma unidade da esquerda radical e reagrupar setores radicalizados, o PRP-BR acabaria por se extinguir em 1980, devido a disputas internas e à perda de diversos integrantes, incluindo os dirigentes Carlos Antunes e Isabel do Carmo, presos por acusações de assaltos a bancos e à colocação de engenhos explosivos.

Fotografia de destaque: Isabel do Carmo e Carlos Antunes, falecido este ano vítima de Covid-19, no julgamento sobre as ações das Brigadas Vermelhas. Créditos: AFP 

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Diogo Pedro Vieira
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