Quando um fragmento musical revela pormenores da trasladação de São Vicente para Lisboa

A redescoberta de um fragmento musical do Ofício da Trasladação das relíquias de São Vicente para Lisboa trouxe à luz duas personagens importantes na narrativa: um rei e um presbítero. É neste Ofício que São Vicente é, pela primeira vez, indicado como o padroeiro de Portugal, revela uma investigação da NOVA FCSH.

“Um homem beato é a Moniz revelado miraculosamente, numa visão trepidante, por favor angélico”. Esta é a frase-chave encontrada no fragmento com notação musical usado para forrar o Livro 843 do Arquivo da Casa da Moeda, em Lisboa, que confirma que foi Moniz, o presbítero, que recebeu as relíquias de São Vicente na igreja de Santa Justa.

A redescoberta do Ofício para a Trasladação de São Vicente, cantada na Sé e na diocese de Lisboa até 1590, “não se compõe apenas de lições narrativas, mas também de peças cantadas, cujo texto é totalmente original. A sua estruturação poética nada deve à métrica clássica”, aponta Manuel Pedro Ferreira, investigador no Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical (CESEM) da NOVA FCSH, num artigo (2017) sobre a redescoberta deste fragmento em 2010 por Margarida Leme e Margarida Seixas da Cunha e analisado por Aires Augusto Nascimento, que identificou neste fragmento parte do Ofício que se refere à trasladação de São Vicente.

A história sobre o mártir e a recuperação das relíquias é contada em duas versões diferentes, no tempo e no conteúdo. A mais antiga é a versão do Mestre Estêvão, membro da igreja e cantor da Sé Catedral, que registou o episódio em 1185. A narrativa é crua e não nomeia os que fizeram parte da trasladação do corpo desde o Cabo de São Vicente para Lisboa. A segunda é a do arcediago Fernando, conde de Flandres, escrita antes de 1233. O discurso, afirma Manuel Pedro Pereira, foi influenciado pelas biografias de santos e baseado num relato do círculo íntimo da filha de D. Afonso Henriques, Teresa de Portugal, Condessa de Flandres.

“Enquanto, no relato de Estêvão, a invenção das relíquias surge como iniciativa colectiva anónima, no relato de Fernando a inspiração, planeamento e concretização da busca, achamento e transporte marítimo das relíquias tem como protagonista central um sacerdote de uma paróquia pobre de Lisboa, que depositou as relíquias em sua casa logo que elas foram retiradas do barco”, indica o investigador. Mas quem era realmente este sacerdote?

Moniz é referido nas crónicas de Fernando como o guardião das relíquias do padroeiro de Lisboa na Sé. O presbítero era pobre e “talvez pouco cultivado”, mas a negociação que fez para trasladar as relíquias de São Vicente para a Sé revelou uma faceta mais astuta do presbítero. Esta moeda de troca não agradou a muitos, inclusive a Estêvão, o que talvez possa justificar a pouca importância dada na narrativa do mestre.

A negociação feita – crê-se que Santa Justa ainda era território de moçárabes – valeu o sustento da freguesia durante 180 anos, compensando “a pobreza dos rendimentos da igreja, e a médio prazo, até sustentar uma colegiada”. O investigador refere ainda que é possível que o protagonismo de Moniz tenha libertado os oleiros de impostos municipais no foral urbano, promulgado por D. Afonso Henriques em 1179, seis anos depois do negócio. No Ofício da Trasladação de São Vicente, Moniz é cantado e “promovido a inspirador e agente da invenção das relíquias e, seguidamente, a negociador astuto”.

Mas este Ofício só foi mandado compor dois séculos mais tarde. Os reis que passaram pelo trono de Portugal não privilegiavam a invocação ao mártir, mas foi D. Afonso IV a exceção. Ordenou a encomenda deste Ofício, o “cume do privilégio” dado a um santo, e onde, pela primeira vez, São Vicente foi identificado como o padroeiro do país. A devoção a este santo era tanta, que D. Afonso IV quis ser sepultado, mais a rainha, junto ao túmulo do mártir.

“Depois do pobre e ignorado presbítero Moniz, artífice da Invenção de S. Vicente, encontrámos assim o segundo grande protagonista deste ofício, o mentor da sua composição literário-musical, guerreiro vitorioso e devoto reconhecido: nada menos do que um rei de Portugal” que, através do canto e da música, preservou a história e as personagens desta época.

Fotografia de destaque: Estátua de São Vicente nas Portas do Sol. Fotografia retirada do website Descubra Lisboa.

Escrito por
Ana Sofia Paiva
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