As quatro paredes de uma casa chamada Lisboa

Os sem-abrigo fazem das ruas e dos albergues a sua casa. Como é a vida destas pessoas? Duas dissertações de mestrado da NOVA FCSH mostram esta realidade vivida através de associações da cidade.

João, nome fictício, é um dos seis homens que contaram a história de como se tornaram sem-abrigo a Pedro Leal, descrita na dissertação de mestrado em Migrações e Inter-Etnicidades e Transnacionalismo (2016) da NOVA FCSH, depois de ser voluntário no Núcleo de Apoio Local gerido pelo Centro Social e Paroquial de São Jorge de Arroios, em 2013. Ao perceber a sua história de vida e dos outros cinco homens, o investigador tentou perceber como é que se pode sair das ruas.

João vivia no Barreiro, na margem sul do rio. Casou-se em 1979, ano em que nasceu a primeira filha. Começou a trabalhar como eletricista com o sogro e, mais tarde, optou pelo ramo da hotelaria numa empresa no Chiado, em Lisboa. Em 1982 nasceu a segunda filha e é nos dois anos a seguir que tudo se transformou numa névoa.

Entre 1983 e 1984, João separou-se da esposa e foi viver para a rua. O investigador não conseguiu perceber os motivos que levaram o homem a perder tudo, mas sabe que, segundo João, caminhou de Lisboa até Almancil, no Algarve. Lá, conseguiu encontrar emprego numa empresa de reparações elétricas e depois no casino de Vilamoura. Conhece a segunda esposa quando decidiu ir trabalhar para a restauração.

Mais tarde, recebeu o convite para trabalhar numa empresa de fabrico de ladrilhos e isso permitiu-lhe viajar por vários países da Europa, onde acabou por viver durante seis anos em Espanha e no meio das drogas. Em meados da década de 1990, João descobriu que tinha uma doença pulmonar e decidiu afastar-se da segunda esposa e dos filhos por consumirem estupefacientes. Entretanto João perde o emprego na empresa de ladrilhos e regressa a Lisboa. Começa por viver numa pensão na Avenida Almirante Reis onde, pouco tempo depois, conhece a Igreja dos Anjos como morada permanente.

A depressão agrava-se e entra no mundo do alcoolismo entre 2004 e 2005 “enquanto escape, e várias pessoas suas conhecidas dão-lhe garrafas de vinho”, escreve o investigador. É aqui que a vida teima em não parar. Entre 2010 e 2012 perde as duas filhas e em 2015 a mãe, o genro e um dos netos: “Como consequência diz sentir-se isolado no mundo, com a perda do carinho que tinha a pessoas que tiverem um papel importante na sua biografia”.

Quando o vício e determinados familiares se perdem, torna-se ainda mais difícil sair das ruas. O investigador percebeu que “todos os entrevistados, utilizaram (ou utilizavam) o álcool para se acalmarem e entorpecerem, quando se encontraram na rua” e “uns não prolongaram o hábito devido a contra-indicação dos medicamentos que tomavam”.

As pessoas em situação de sem-abrigo é um problema visível e em Lisboa há várias associações que os auxiliam para conseguirem sair dessa vida. Entre elas encontra-se a Associação Crescer e os seus núcleos estão espalhados pela cidade, incluindo o Espaço Âncora, sítio onde os mais necessitados podem obter ajudas como cuidados de enfermagem, a disponibilização de material para consumo, balneários, biblioteca, entre outros.

Uma das áreas de ação encontram expressão em projetos, como é o caso do “É uma casa – Lisboa Housing First”, pioneiro na cidade por tentar dar um teto aos mais carenciados: “Contacta com pessoas em situação crónica de sem abrigo e, através de uma aproximação e criação de relação, tentam disponibilizar uma transição para uma casa, com um respetivo acompanhamento e apoios sociais e psicológicos”, escreve André Leiria, na dissertação de mestrado em Antropologia – Culturas Visuais (2019) da NOVA FCSH.

Foi através deste programa que o investigador realizou o filme “Para além da margem” onde memorizou os relatos de vida e o quotidiano de quatro homens: Bartolomeu, Dalibor, Jacinto e João Paulo. No filme, uma das psicólogas da associação explica os fenómenos.

Na última visita que André Leiria fez a Jacinto, já sem o compromisso de gravar com ele, o homem explicou-lhe porque não queria uma casa: ao não ter dinheiro suficiente para comprar comida, a rotina em ir buscar os alimentos às carrinhas de distribuição alimentar não mudou. Neste sentido, “continua a ter os mesmos problemas de quando vivia na rua, como se ainda vivesse”.

Os investigadores, apesar de mostrarem duas faces diferentes da mesma realidade, concluem que sair das ruas é uma tarefa mais complexa do que aparenta. Para além da força de vontade em sair, na maioria dos casos, dos vícios, mais importante é ter uma estrutura económica, profissional e pessoal estável para se conseguir um teto que não seja a própria cidade.

Fotografia: Pessoa sem-abrigo em Lisboa. Fonte: iStock

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Ana Sofia Paiva
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