As vidas do jardim do Campo Grande – Parte I

Sabia que o jardim do Campo Grande era conhecido como o Campo de Alvalade ou Alvalade-O-Grande? De um espaço de vinhas a zona fabril, este espaço foi vivendo tantas vidas como aquelas que por lá ainda passam.

O jardim do Campo Grande nem sempre foi como nos dias de hoje.  A sua história tem “altos e baixos, alternando momentos de decadência e de esplendor, que espelham as dinâmicas da transformação urbana da cidade de Lisboa e as mudanças nos hábitos e costumes da sua população”, escreve Sandra Crespo Pereira, na dissertação de mestrado em Ciências Musicais (2020) da NOVA FCSH.

Recuemos ao século XII. A área do atual jardim era uma zona de vinhas, quintas e hortas e marcava uma das entradas e saídas da cidade. De uma zona estritamente rural passou a ser um espaço público ou logradouro alguns séculos mais tarde, em 1520. Mais de cem anos depois, em 1680, começa a ser projetada a primeira alameda do jardim, indica a investigadora.

A freguesia do Campo Grande, que se conhece desde 1602, era conhecida por “Os Reis de Alvalade”. A razão? “Esta denominação dever-se-ia provavelmente à presença de uma pequena ermida da Invocação dos Três Santos Reis datada do século XVI”, explica Sandra Crespo Pereira. Esta ermida, parcialmente destruída pelo terramoto de 1755, foi o ponto de partida para o ajuntamento de pequenas comunidades ao seu redor. Depois do terramoto, a ermida foi reconstruída no lugar da Igreja dos Santos Reis Magos. Contudo, o Campo Grande só viria a ser uma das freguesia do concelho de Lisboa em 1885.

O Jardim começa, assim, a ser modernizado nos finais do século XVIII. Diogo Inácio de Pina Manique, conhecido pelo cargo de Intendente-Geral da Polícia, confere ao espaço uma nova vida, com uma feira anual, iniciada em 1778. “A realização desta feira terá conferido uma maior visibilidade e exposição a este local contribuindo, possivelmente, para a necessidade de aí se realizar uma intervenção com o intuito de o melhorar e facilitar os seus acessos”. E assim foi. Ainda no final do século XVIII, começaram a ser plantadas árvores.

A sonoridade da paisagem da época era evocada pelos pássaros, pelos arados, dos chocalhos dos animais e ainda pelos sinos da ermita, que assinalavam as horas, as celebrações e as catástrofes. Os sinos eram o guia do tempo. Mas a viragem para o século XIX iria mudar esse facto.

Ainda como um jardim na periferia de Lisboa, o jardim do Campo Grande era visto como um espaço para classes altas, que iam assistir e apostar nas corridas de cavalos, em 1816. “Estes eventos atraíram um novo público a frequentar o parque, como escreveria décadas mais tarde o escritor e romancista Gervásio Lobato”, indica a investigadora.

A ida ao jardim do Campo Grande tornou-se uma atividade de domingo mas, com a chegada dos transportes públicos e a facilidade de acesso a esta zona, o Campo Grande “continuava a ser considerado uma zona rural e de passagem (nomeadamente de gado)”, o que motivou a Câmara Municipal de Lisboa a elaborar um edital, em 1837, com determinadas regras a serem cumpridas, de maneira a que o sítio fosse mais “civilizado”.

As regras, entre outras, proibiam caçadas dentro do jardim, a circulação de carros ou animais de carga e ainda estender roupa: “A publicação deste edital constitui um bom exemplo das primeiras tentativas (por parte das autoridades locais) de civilizar o atual Jardim do Campo Grande, que deixa de ser apenas um logradouro público para se converter num espaço subordinado a trabalhos de manutenção e vigilância”, escreve.

Nos terrenos vizinhos, no fervilhar fabril do século XIX, algumas indústrias começam a surgir, principalmente dedicadas à cerveja, aos lanifícios, aos produtos químicos, à lapidação de diamantes e de cordoaria. Um exemplo conhecido é a fábrica de lanifícios Lusitânia, inaugurada em 1842, que hoje dá lugar à Universidade Lusófona. À época, empregava 150 operários e dava trabalho a mais 450 pessoas no exterior.

No século XIX, a sonoridade funcionava de forma capitalista: os sinos eram tocados para assinalar a entrada e a saída dos operários, as pausas e os ritmos de trabalho. “Assim, de certo modo, os ritmos quotidianos do jardim seriam marcados pelas sonoridades das fábricas e da igreja situada nas imediações, que proporcionariam uma rica variedade de sinais e marcas sonoras à envolvente sonora do jardim”. Os bailes e as celebrações religiosas não faltaram e as bandas filarmónicas e fanfarras eram uma das principais atrações.

Fotografia: Jardim do Campo Grande, em 1910. Arquivo Fotográfico de Lisboa (Créditos: Joshua Benoliel).

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Ana Sofia Paiva
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