Drama em prédio das Avenidas Novas

Aconteceu onde não era suposto acontecer, e foi manchete no Diário de Notícias: o abandono de uma criança na escada de um prédio da Avenida Defensores de Chaves.  Uma cobertura sensacionalista de um circunspecto jornal.

Para o Diário de Notícias colocar em primeira página, dois dias seguidos,  a 9 e 10 de novembro de 1970, uma história de abandono, o local e o dia da semana tinham de ter mesmo muita importância. Este abandono ocorreu a um domingo (dia de poucas notícias), a meio da tarde (a tempo de poder ser trabalhado para a edição do dia seguinte), nas escadas de um prédio das Avenidas Novas (perto da redação do jornal, ao cimo da Avenida da Liberdade).

A criança fora encontrada pela porteira do prédio, que telefonara para ‘o seu jornal’ antes de chamar as autoridades (não é de hoje…). A redação viu ali um exclusivo, havia que lhe dar visibilidade. Era necessário enviar um jornalista aos locais, ouvir a porteira, a enfermeira na Misericórdia que acolhera a criança, o polícia de serviço na esquadra do Matadouro. O fotógrafo captaria umas imagens da criança chorosa, num contraste entre aquele menino abandonado com os “milhares de crianças, felizes, [que] passeavam pela estrada marginal, no convívio dos pais”, como se lê na abertura da sentimental peça escrita sobre este caso. O remate: “Um drama na cidade imensa. Um drama que não devia ser possível no domingo pacato, tranquilo, ensolarado.”

No dia seguinte, o desfecho: “Foi um ato desesperado. Abandonou o filho pensando assim assegurar melhor o futuro do seu menino. Escolheu um prédio de ‘gente rica’ mas, depois, horas passadas, arrependeu-se. A mãe vencera a mulher em dificuldades, abandonada, esquecida por alguém que lhe prometera amor e felicidade…”.

Este é um exemplo da “estética do melodrama”, onde o mundo é apresentado como que governado por valores e forças morais e emocionais, destaca Cristina Ponte que, na sua tese de doutoramento (2002) sobre a cobertura noticiosa da infância, liga o discurso do jornalismo à literatura. O melodrama é perene no jornalismo, com personagens construídas de forma simplista : entre as histórias de vítimas, as crianças constituem-se como os líderes simbólicos: quanto mais pequenas melhores ‘boas vítimas’ serão na perspectiva da noticiabilidade.

A autora, do Departamento de Ciências da Comunicação da NOVA FCSH, contrasta esta deriva sensacionalista do Diário de Notícias com o tom factual e minimalista com que o jornal noticiava outros abandonos de crianças, em tempos de censura política e social, na sua página 4, a das ‘desgraças’.

A tese deu origem a dois livros: Leituras das Notícias (Livros Horizonte, 2004) e Crianças em Notícia (Imprensa das Ciências Sociais, 2005).

Escrito por
FCSH +LISBOA
Ver todos os artigos
Escrito por FCSH +LISBOA

O PROJETO

Lisboa vista pela ciência [Saiba +]

Ficha técnica e contactos

Na redes

+ Comunicaçao de Ciência na NOVA FCSH

Unidades de Investigação da NOVA FCSH

Clique aqui para aceder às 16 unidades de investigação da NOVA FCSH.