A Bruxa do Chiado e a Pioneira da Medicina em Lisboa

O confronto entre o feminismo, a ciência e a bruxaria das quiromantes marcou o início do século XX, na capital lisboeta.

Madame Brouillard falava português, francês, inglês, alemão, italiano e espanhol. As suas bruxarias, superstições, adivinhações e benzeduras valeram-lhe a fama. Por outro lado, a médica Adelaide Cabete afirmou-se nas letras e ciências. Foram duas mulheres que respiraram o mesmo ambiente social na a transição da Monarquia para a República, mas que traçaram caminhos diferentes e incompatíveis, como revela Isabel Lousada, investigadora do CICS.NOVA.

Virgínia Rosa Teixeira nasceu em Vila Real, a 9 de novembro de 1852. Profissionalmente conhecida por Madame Brouillard, a quiromante ficou célebre pelo consultório que abriu na Rua do Carmo, n.º 43,  em Lisboa no fim de 1905. Madame Brouillard “dá consultas diárias das 9 horas da manhã às 11 da noite”, a 1$000, 2$500 e 5$000, lê-se no “Almanach das Senhoras de 1913”, citado por Isabel Lousada no artigo “Entre a crendice e a superstição – a voz feminina“.

Depois de prever a queda do Império do Brasil e com recurso a anúncios espalhados pela imprensa portuguesa, a adesão aos seus serviços foi grande, numa altura em que “a solução para doenças da alma e do corpo se procura recorrendo não à ciência, mas a outras artes”, afirma a investigadora. Em 1907, publicou o livro “Divinação do Passado, Presente e Futuro”. Com 73 anos, a quiromante e fisionomista portuguesa morreu a 4 de setembro de 1925, em Lisboa.

O lado da ciência

No início do século XX poucas mulheres tinham uma participação ativa no mundo da cultura e as que tinham recorriam a pseudónimos, tanto masculinos como femininos. Adelaide Cabete é das que utilizaram outra mulher para se auto-denominar: Louise Michel, uma revolucionária na luta do feminismo na Comuna de Paris.

“Tinha um caráter nobre, simples, mas firme”, afirma Isabel Lousada no livro “Adelaide Cabete (1867-1935)” (Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, 2010). Pioneira da Medicina em Portugal, formou-se na Escola Médico-Cirúrgica em Lisboa. Como médica obstetra e ginecologista, tinha um grande gosto pelo saber e pela defesa dos mais necessitados. Manteve uma reputação importante como cientista e educadora. Foi das primeiras médicas a exercer a profissão em Lisboa, com Carolina Beatriz Ângelo.

O consultório de Adelaide foi a sede do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas. Escreveu vários artigos de opinião e participou em várias causas de emancipação. Foi também uma revolucionária pacifista. Defendia a proteção das crianças em prol de travar a violência: “Em 1923, como já tive ocasião de dizer algures apresentei numa reunião pacifista internacional, em Paris, o princípio de que as máximas se queres a paz prepara a guerra e se queres a paz prepara a paz devia ser substituídas pela seguinte: se queres a paz prepara a criança”, lê-se no livro.

O “confronto”

Adelaide Cabete conhecia a Madame Brouillard. No entanto, não há registo de que a bruxa soubesse da existência da feminista.

Num tempo em que se recorre a artes de medicina tradicional e de superstição, a ciência era desvalorizada. “Adelaide Cabete, que desde a primeira hora se unira aos revolucionários republicanos, não dá tréguas às quiromantes, às práticas obscurantistas capazes de inquinar o progresso emancipatório dos povos”, afirma Isabel Lousada. A crença na ilusão era constante e insuportável para a bolsa da maioria da população. Também as suas vidas eram hipotecadas, explica: “o domínio da crendice não era comprovado pela ciência. Estas pessoas, que não tinham recursos quase nenhuns, iam hipotecar as suas vidas, o pouco que ainda tinham para as suas famílias, ao entregarem valores a, nestes termos, uma ilusão”.

A republicana defendia a emancipação das mulheres e o projeto científico e intelectual, logo exercício de rituais semelhantes aos da Madame eram incompatíveis com a libertação das consciências conservadoras. A crítica da médica à conhecida “bruxa do chiado” é explícita num documento escrito e assinado pelo nome de Luíza Michel, em março de 1911: “Não podemos nós Maçons, cuja divisa é combater o Erro a Superstição e o Fanatismo – assistir indifferentes ao estadeamento de tal industria e vimos pedir á cooperação de todos os nossos o auxilio bastante para reclamar das auctoridads administrativas, a applicação das leis, a adopção de medidas energicas, immediatas, conducentes a expulsar do nosso meio as Chiromantes e Adivinhas cuja existência é publica e notoria, e a perseguir e impedir a exploração de tal industria ás que se acobertárem com o anonymato, mas cuja resistencia será facil descobrir se todos os nossos prestarém á causa porque nos interessamos, o appoio a que se óbrigáram pelos seus compromissos maçonicos”.

Escrito por
Joana Sofia Mendes e Madalena Borges de Carvalho
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