A ortodoxia cristã cedo se apropriou, no plano simbólico, da mitologia grega. Hércules, o herói que a espada e fogo matou a temível Hidra, servia de feição para representar a luta do bem contra o mal. Uma associação de ideias que a Inquisição portuguesa não deixou de explorar iconograficamente.
Os mitos clássicos, que influenciaram toda a cultura ocidental nos últimos 2500 anos, perpassaram logo as primeiras manifestações artísticas cristãs. Porém, só na Renascença a Igreja de Roma autorizou a sua representação a par das temáticas religiosas tradicionais. Nesse processo de cristianização de signos profanos, um dos episódios mais repetidos seria a lendária luta de Hércules contra a Hidra de Lerna, a monstruosa e letal criatura aquática de várias cabeças que se auto-regenerava, tinha sangue e hálito venenosos e guardava a entrada do submundo.
Como analisa neste estudo Milton Dias Pacheco, investigador do CHAM – Centro de Humanidades da NOVA FCSH, a Hidra tornou-se, durante o período da Inquisição, uma forma de identificar todos os inimigos da fé católica, sendo os seus defensores comparados a Hércules. Este mecanismo de propaganda foi também usado por numerosas casas reais europeias.
No caso dos Habsburgos, o imperador Carlos V até reclamou linhagem do herói grego e incluiu os pilares de Hércules no seu brasão de armas. O seu filho, Filipe II (Filipe I de Portugal), recorreu a Hércules para reforçar a sua imagem política quando encomendou um autorretrato para o teto do lisboeta Paço da Ribeira. E quando o seu sucessor, Filipe II, visitou Portugal em 1619 (21 anos depois de herdar o trono), várias cidades ergueram em sua honra estruturas efémeras que aludiam a Hércules e a outros heróis da Antiguidade, como Jasão, Teseu e Ulisses.
Foi nessa ocasião que o Tribunal de Lisboa da Inquisição patrocinou um monumental arco triunfal, colocado na entrada principal do Paço da Ribeira, e que evocava a relação dinástica de Filipe II com Hércules através de seis pinturas e passagens bíblicas.
Segundo Milton Dias Pacheco, também os reis portugueses fizeram uso dessa imagética, sobretudo desde que em 1536 D. João III estabeleceu a Inquisição em Portugal. D. José I, que Machado de Castro representou a esmagar serpentes na famosa estátua equestre que se encontra no Terreiro do Paço, também surgiu numa gravura de 1759, vestido de Hércules e a derrotar uma Hidra que simbolizava a expulsão dos jesuítas.
Imagens: em destaque, Hércules derrota Hidra de Lerna (anónimo, gravura, 1555, Museu Britânico, em Londres); acima, estátua de D. José I a esmagar serpentes, no Terreiro do Paço (escultura de Joaquim Machado de Castro, século XVIII).