Escavações arqueológicas e investigação documental revelam a primeira rede de saneamento criada em Lisboa no século XVI.
Lisboa era uma lixeira a céu aberto no final do século XV. A falta de infraestruturas para os resíduos urbanos e para o seu escoamento facilitava a propagação de doenças na cidade. As ruas eram forradas com as imundices dos moradores e dos animais que circulavam, bem como os restos das atividades económicas. Os rios, o espaço exterior junto à muralha e os fossos eram os “caixotes do lixo”.
A rede de drenagem pluvial e o escoamento de esgotos apenas foi instituída nas primeiras décadas do século XVI por D. Manuel I, consideram André Teixeira, investigador do Centro de Humanidades (CHAM) da NOVA FCSH, e Jacinta Bugalhão, da Direção-Geral do Património Cultural, no artigo dos Cadernos de Arquivo Municipal (2015) sobre os canos da Baixa de Lisboa no século XVI.
Através do manuscrito “Estes sam os cannos que a nesta cydade de Lisboa”, a cópia que se insere no Livro dos Pregos (coletânea de documentos da cidade dos séculos XIII a XVI), os investigadores fazem um retrato histórico e arqueológico da cidade antes do terramoto e da reestruturação da cidade. A descrição é feita de poente para nascente, da zona Cata-Que-Farás (hoje Cais do Sodré) até à Porta do Mar (em Alfama). A rede passava pela baixa lisboeta, onde era mais densa e, no final, todos os caminhos desembocavam no rio Tejo.
O percurso dos achados arqueológicos da rede da baixa lisboeta começa no extinto Hospital de Todos-os-Santos, na zona do Rossio. Durante a intervenção das escavações para o metropolitano de Lisboa, em 1960, encontraram-se vários vestígios arqueológicos, entre eles “um troço de grande conduta”, o qual se pensa pertencer ao cano real “de São Domingos”. Em 2000, durante as intervenções no mesmo local para a expansão do metropolitano, a mesma conduta voltou a ser reconhecida. Nesta encaminhava a água que descia dos vales da agora Avenida Almirante Reis e da Avenida da Liberdade, ainda no século XV, o que fez com que a população se habituasse a viver junto das linhas de água. “Além de encanar estas ribeiras, a estrutura recebia esgotos urbanos de diversas habitações, nomeadamente daquele grande complexo monástico e equipamento público assistencial” que os documentos descrevem, apontam os investigadores.
Ao longo da direção da rede de saneamento, já entre a Rua dos Sapateiros (número 130 a 144) e a Rua da Assunção (número 73 a 77), encontraram-se estruturas habitacionais, uma conduta de esgoto – que os investigadores apontam para um “cano real”, dadas as grandes dimensões e orientação –, uma forja e um arruamento pavimentado a calçada. Este último poderá corresponder ao largo onde se encontravam as Rua Nova d’el Rei, a Rua dos Escudeiros e a Rua da Caldeiraria.
Ao continuar em direção à Praça do Comércio, na Rua Augusta e na Rua dos Sapateiros descobriram-se vestígios de saneamento pré-terramoto em bom estado de conservação. Ao continuar, depois calcorrear a Rua de São Nicolau e atravessar a Rua dos Correeiros, o quarteirão delimitado pela Rua de São Julião, Rua Augusta e Rua do Comércio encerra em si estruturas de habitação pré-pombalina e, consequentemente, um cano de saneamento. Sabe-se que desaguava “junto ao Cais de Pedra, conforme sugere a planta de João Tinoco, a nascente do Terreiro do Paço”.
Ao chegar ao Terreiro do Paço, os achados arqueológicos continuaram a aparecer em obras. É o exemplo da renovação da rede de saneamento pela EPAL, em 2005, na zona norte da Praça do Comércio, onde se identificaram vestígios pré-pombalinos e, em 2009, se encontraram estruturas portuárias de grandes dimensões, condutas públicas e níveis de pavimento.
Atualmente, sabe-se que existiam dois canos reais que atravessavam a baixa lisboeta, na direção norte-sul: um que provinha do vale ocidental a norte da cidade e que atravessava o Rossio; e outro oriundo do vale oriental e que passava sob o Hospital Real de Todos-os-Santos.
“Os dois confluíam num só canal real, em plena Baixa, seguindo a linha do antigo esteiro, sobre o qual foi implantada a Rua Nova D’el Rei, até desembocar no Tejo. Estas condutas são estruturas imponentes, de grande dimensão”, explicam os investigadores, acrescentando que “o tipo de construção faz crer que a manutenção e limpeza destas condutas se faria pelo seu interior, acessível no verão”.
A rede de saneamento quinhentista estava hierarquizada em quatro tipos: as condutas de primeira ordem (ou os “canos reais”), as condutas públicas de segunda ordem, as condutas públicas de terceira ordem e as condutas privadas. Apesar da preocupação do abastecimento de água manifestada no século XV, ainda não se registou nenhuma estrutura de conduta de canalização de água em achados arqueológicos.
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Fotografia de destaque: Troço do cano real “de São Domingos”, encontrado no extinto Hospital Real de Todos-os-Santos na intervenção na Praça da Figueira para a expansão do metropolitano, em 2000. Créditos: Rodrigo Banha da Silva